A vitória eleitoral de Luiz Inácio Lula da Silva inaugura um novo ciclo de lutas para o povo brasileiro. Após seis anos de retrocessos neoliberais e autoritários, vivenciados no país no período iniciado com o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff, reconduzimos à Presidência da República a maior liderança da classe trabalhadora da história do Brasil e restabelecemos as condições para avançarmos na luta pela democracia, direitos sociais e políticas públicas capazes de melhorar as condições de vida do povo. A vitória eleitoral foi garantida, sobretudo, pelo voto de milhões de pessoas pobres e famílias vulneráveis, pelas mulheres, pela população negra e pela juventude. Trata-se de uma extraordinária vitória frente ao enorme aparato de mentiras e uso sem precedentes da máquina pública, vide o orçamento secreto. Mas para que o novo governo, que assumirá em janeiro, atenda de fato às necessidades da população que o elegeu será fundamental avançarmos no processo de organização popular, lutas e consciência política, pois vencemos o Bolsonaro e não o bolsonarismo – que continua forte, inclusive com base popular.
A conjuntura segue muito desafiadora. No plano internacional, o cenário é de múltipla crise: econômica, política, social e ambiental. A guerra envolvendo Rússia e Ucrânia e a escalada na disputa geopolítica entre o declinante império estadunidense e a China trouxeram novos distúrbios a uma economia global que se arrasta em crises sucessivas desde 2008. A reiteração das políticas de austeridade, da financeirização e o crescente domínio da Wall Street e do Banco Central estadunidense canalizaram de forma ainda mais acelerada as riquezas produzidas em todas as partes do mundo para as mãos dos setores rentistas e de uma oligarquia financeira global. A decorrência mais imediata é a concentração de renda, o aumento vertiginoso das desigualdades e uma forte instabilidade decorrente da perda de controle institucional sobre a governança macroeconômica. Como consequência, vivemos crises sucessivas, como a atual escalada inflacionária que tem atingido, sobretudo, o preço dos alimentos, espalhando o drama da fome em todo o mundo.
A gravidade é tanta que nem mesmo aquele que governa a maior economia do mundo, Joe Biden, logrou em estabilizar os principais indicadores macroeconômicos do país e entregar aquilo que prometera em sua campanha eleitoral. Mesmo dispondo de maioria congressual, o presidente dos EUA enfrentou os mais variados mecanismos de boicote do capital ao que havia de progressista em sua agenda, em uma demonstração cabal de que os capitalistas não estão dispostos a sinalizar qualquer recuo em sua lógica de busca permanente por maximização dos lucros. No plano político, a decorrência disso é a explosão da raiva daqueles que se sentem atingidos pelos efeitos da crise e que encontram em falsas alternativas um caminho para canalizar o ódio.
Alimentado por isso, o fenômeno do neofascismo segue avançando por diversos países do mundo, incluindo obviamente o Brasil. O neofascismo se alimenta da crise econômica para promover a crise política, operacionalizando uma completa desconexão social com a realidade como forma de canalizar a raiva e a frustração para os bodes-expiatórios que elege como culpados para os problemas gerados pelo capitalismo neoliberal. As principais vítimas desse processo são os imigrantes, minorias, populações negras e LGBTQIA+, a esquerda e os comunistas, dentre outros grupos atingidos por uma rede global de produção de mentiras que desvia a atenção das populações das reais causas da crise.
É justamente esse cenário de múltipla crise que se encontra o Brasil. O governo Bolsonaro é a expressão nacional de tal fenômeno global, combinando as perversidades do neoliberalismo – cortes de direitos, desinvestimento social, priorização dos interesses rentistas – com a escalada autoritária com fortes conotações fascistas.
Como prevíamos, Bolsonaro produziu, ao longo de seu governo, um projeto de morte, que nos atingiu em todas as esferas. Na saúde, o negacionismo matou centenas de milhares de pessoas, mortes que poderiam ter sido evitadas se houvesse a necessária negociação de vacinas contra a doença em 2020.
O cenário de morte se reproduziu na área econômica, com a condução da mesma agenda que, desde o golpe de 2016, tem retirado direitos da classe trabalhadora no Brasil. Relatório divulgado pelo banco Credit Suisse mostra ainda que a desigualdade social só está aumentando. Em 2020, quase a metade da riqueza esteve concentrada nas mãos da faixa 1% mais rica da população. É o pior nível de concentração de renda no Brasil desde pelo menos 2000, quando o 1% mais rico era dono de 44,2% das riquezas. Em 2010, último ano do governo Lula, o número havia caído para 40,5%, a menor proporção registrada.
Foi justamente isso que garantiu a continuidade do governo Bolsonaro, impedindo sua queda a despeito dos inúmeros crimes que cometeu: o compromisso inabalável com o neoliberalismo ortodoxo que atende aos interesses das classes dominantes brasileiras e transnacionais. De um lado, aumento vertiginoso da insegurança alimentar, com cerca de 33 milhões de brasileiros passando fome; de outro, o aumento do número de bilionários e da concentração de riquezas.
O totalitarismo neoliberal impediu o debate público sobre os reais problemas enfrentados pela economia brasileira, que foi marcada nesses quatro anos pelos dramas da fome, do desemprego e da inflação galopante. De acordo com a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Pessan), cerca de metade da população, 116,8 milhões de pessoas, está em situação considerada de insegurança alimentar, ou seja, não tem acesso pleno e permanente a alimentos. Em decorrência disso, as cenas lamentáveis de pessoas revirando lixo em busca de sobras de alimentos, disputando resto de alimentos com urubus ou procurando ossos para comprar seguem nos alarmando. Isso tudo no país que é o 4º maior produtor de grãos de soja, milho, arroz, trigo e cevada do mundo, cerca de 7,8% da safra mundial.
A escalada inflacionária que impede o consumo de alimentos está também associada ao aumento constante dos preços do petróleo e do gás. Desde o golpe, os governos que se sucederam promovem uma política de preços que atenta contra a vida do povo brasileiro. Essa política gerou aumentos de mais de 50% dos preços de diesel, gasolina e gás de cozinha (GLP), segundo dados da Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). O objetivo, atingido, era aumentar a remuneração dos acionistas da empresa, que comercializa papeis em Nova York e prefere prestar contas ao mercado financeiro, não ao povo brasileiro. Ao mesmo tempo em que pagamos preços recordes nesses produtos, a Petrobras distribui dividendos também recordes: a mais recente notícia é de nova distribuição bilionária de dividendos aos acionistas da companhia, R$ 44 bilhões, enquanto milhões de pessoas passam fome e outras tantas moram nas ruas.
Somam-se ao desmonte promovido pelo projeto bolsonarista os crimes ambientais, com destaque ao desmatamento na Amazônia, o aumento da violência, o desfinanciamento da educação, da saúde, da cultura e o fim das políticas de moradia, dentre outros. Tudo isso conjugado com uma desestabilização institucional permanente que, associada ao crescente movimento fascista na sociedade, buscava atingir o objetivo estratégico do bolsonarismo que era a mudança de regime político no Brasil para uma ditadura neofascista.
Em contraposição, em meio a tanto retrocesso, resistimos, sobrevivemos, e logramos colocar um fim a esse governo e retomar as possibilidades de um novo ciclo de conquistas democrático-popular. No âmbito da Campanha Nacional Fora Bolsonaro, articulação sustentada pelas frentes Brasil Popular, Povo Sem Medo e outras dezenas de redes e entidades dos movimentos sociais, nós da Central de Movimentos Populares (CMP) nos envolvemos ativamente na proposta de pensar em como enfrentar nas ruas o bolsonarismo. No contexto da pandemia da Covid-19, debatemos alternativas para protestar, com envolvimento na construção de atos descentralizados, como no Dia Mundial de Saúde, e em protestos massivos, como o grande ato de 29 de maio de 2021, que resultou em uma nova fase da luta por vacina no braço, comida no prato e ‘Fora, Bolsonaro’. Organizamos, junto a outros movimentos, manifestações em 214 cidades no Brasil, que recolocaram as classes populares e trabalhadora nas ruas.
Demonstramos ainda mais força nos atos seguintes, como em julho daquele ano, quando milhares de brasileiros saíram às ruas em 488 manifestações em todo o país para protestar pelo impeachment de Jair Bolsonaro, sua política econômica e a ausência de medidas efetivas de combate à pandemia. Mantivemos nosso calendário de lutas com o Grito dos/as Excluídos/as, tivemos ainda o 8 de março e o 20 de novembro, com o “Fora Bolsonaro Racista”. A realização dos atos e o papel da Campanha Nacional Fora Bolsonaro mostraram a importância dos movimentos populares para derrotar eleitoralmente o neofascismo.
Em 2022 não foi diferente! Ao longo de todo ano, defendemos a realização de uma campanha militante, que disputasse nas ruas, os corações e a mente do povo brasileiro em defesa de um projeto democrático-popular para o país. Junto ao Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), União Nacional por Moradia Popular (UNMP) e Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), e diferentes movimentos nos estados, construímos as Brigadas de Agitação e Propaganda por Lula Presidente. As ações mobilizaram milhares de pessoas em todo o Brasil e foram fundamentais para garantir a nossa vitória eleitoral e a derrota de Bolsonaro.
Contribuímos ainda com a construção de plenárias de movimentos sociais e populares, com o lançamento de documentos que expressam as principais demandas das classes populares brasileiras, em defesa de uma campanha de massas que fosse capaz de defender nas ruas a eleição de Lula. Também contribuímos com a coordenação nacional da campanha e coordenações estaduais, além do grupo de mobilização que promoveu comícios massivos em diferentes capitais, somado às mobilizações da militância organizadas mesmo sem a presença do Lula, como a rica experiência do movimento ‘Sextou com Lula’.
Mas os desafios seguem presentes no contexto pós-eleitoral. É preciso, para além da mudança na correlação de forças institucional, transformar a correlação de forças na sociedade. O governo Lula já está em disputa e sendo pressionado permanentemente pelas forças neoliberais, pela direita tradicional que busca capitalizar para si a derrota eleitoral de Bolsonaro, inclusive tentando incidir na política fiscal do futuro governo, se opondo a escolha de ministros da área econômica com viés desenvolvimentista. Além disso, o neofascismo segue dando demonstração de capilaridade social e, certamente, permanecerá mobilizado para desestabilizar o governo Lula e levar à frente a conjunção de neoliberalismo e fascismo. Nesse cenário adverso e de disputa permanente não podemos ter um minuto de hesitação e vacilo. É preciso ter foco em duas prioridades: uma nas políticas públicas que melhores as condições de vida do povo; a outra é contribuir para elevar o nível de organização dos movimentos sociais e populares e aumentar a consciência política, através de um processo de participação popular direta, tendo como elemento fundamental a educação popular das massas.
Entendemos que a melhor forma de apoiar o governo LULA é estarmos mobilizados em torno das reivindicações populares. E a melhor forma de fazê-lo é lutando pela concretização das pautas que produzem efetiva melhoria na vida do povo brasileiro. Somente com transformações profundas, de sentido democratizante, teremos condições de derrotar na sociedade o projeto neofascismo.
É fundamental garantir a realização de um trabalho de base permanente, com uma metodologia que envolva educação popular de massas, organização e mobilização, com a finalidade de fortalecer os movimentos populares e sociais rumo a um projeto que vise avançar na conscientização do povo da necessidade de pôr fim ao capitalismo e abrir caminhos para o socialismo. Neste sentido, é preciso radicalizar na participação popular. É preciso retomar as conferências e conselhos, mas esses instrumentos precisam ser qualificados. É fundamental dar um passo a mais no processo de participação, com novas formas. Podemos, por exemplo, usar a tecnologia para consultas diretas sobre temas de interesse geral, incidir na elaboração do orçamento federal, inclusive atuar junto às áreas de planejamento e da economia. Uma política de participação que considere o elemento territorial, tanto no que diz respeito à dimensão federativa, quanto aos territórios, favelas, periferias.
Muitos dos nossos territórios estão dominados por outros valores, que não são os democráticos e de defesa da vida. Pelo contrário, estão dominados pelo conservadorismo, pelo racismo, machismo e a LGBTQIA+fobia. Esse é o grande desafio: fortalecer o trabalho entre as classes populares discutindo com o povo a concretização do projeto de país democrático e popular que elegeu Lula Presidente.
Ganhamos as eleições, em uma vitória histórica da classe trabalhadora brasileira. Agora, governo e movimentos sociais têm que atuar juntos para alterar a correlação de forças para fazer as mudanças estruturais no país. As políticas de emergência são fundamentais para sobrevivermos ao desmonte, mas é preciso ir além: mudar a estrutura de poder, dividir a riqueza que, apesar de produzida por nós, está concentrada nas mãos de tão poucas pessoas.
Em 2022, demos a resposta nas urnas em um grande movimento que combinou mobilização nas ruas e disputa institucional. Mas nossa tarefa não termina aqui. Os movimentos populares seguem sendo fundamentais para garantir uma governabilidade de sentido progressista e as transformações que tanto almejamos.
Para fazer reforma urbana, reforma agrária, reverter as privatizações, combater a fome, investir na educação, saúde, derrubar o teto de gasto para investimentos públicos, garantir direitos trabalhistas, com redução da jornada de trabalho e política de pleno emprego, e taxar as grandes fortunas, além de garantir o conjunto de reformas democrático-populares que estabeleça um novo patamar civilizatório no Brasil, temos de fortalecer nossos movimentos e lutas. Precisamos organizar a classe trabalhadora, que hoje é muito diversa e está atomizada por uma complexidade heterogênea de espaços e redes. Esse desafio está colocado para a CMP e para os demais movimentos populares e sociais.
Sabemos que, para derrotar o capitalismo, é preciso construir a base político-social de sustentação de um projeto democrático popular para o país. E para tanto é preciso avançar na disputa de hegemonia, com organização, formação e lutas de massas para alterar a correlação de forças em favor do trabalho ante o capital. A CMP continuará a apostar na construção de espaços de articulação e unidade dos movimentos sociais e populares como a Frente Brasil Popular, em diálogo com a Povo Sem Medo, e até mesmo avançar no sentido de termos uma única frente de movimentos sociais, populares e sindicais para enfrentar os desafios do próximo período. Entendemos que este é o caminho para garantir continuidade da luta contra o capitalismo e o fascismo.
Participamos do governo de transição e iremos em milhares à posse de Lula em 1º de janeiro de 2023, não só para comemorar nossa vitória, mas também levantar nossas bandeiras, reivindicações e propostas de transformação. Lutaremos pela apuração, julgamento e punição de todos os crimes cometidos por Bolsonaro e seus asseclas. Não é aceitável anistia em nome de um pretenso distencionamento na sociedade. Com criminosos não há conciliação! Defendemos os serviços públicos e nos opomos às privatizações, pela revogação dos sigilos por 100 anos, o fim do teto de gasto e o orçamento secreto.
Seguiremos lutando por cidades justas, na defesa de um governo democrático-popular, dos direitos, da soberania popular, na luta contra a fome e a desigualdade social, por emprego e renda adequada, moradia, cultura, saúde, educação, preservação do meio ambiente, contra o racismo, o machismo e contra todas as formas de discriminação. Que venha 2023. A luta continua!
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.