FANTASMA DO COMUNISMO

O cientista chinês expulso dos EUA que virou o pai do programa espacial da China

Qian Xuesen ajudou a criar foguetes e mísseis balísticos para Washington, mas foi alvo da histeria anticomunista do macarthismo e virou peça-chave para Pequim transformar o país em uma potência espacial

Escrito em História el
Jornalista que atua em Brasília desde 1995, tem experiência em redação, em comunicação corporativa e comunicação pública, em assessoria de imprensa, em produção de conteúdo, campanha política e em coordenação de equipes. Atuou, entre outros locais, no Governo Federal, na Presidência da República e no Ministério da Justiça; no Governo do Distrito Federal, na Secretaria de Comunicação e na Secretaria de Segurança Pública; e no Congresso Nacional, na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados e na Comissão Mista de Planos, Orçamentos Públicos e Fiscalização (CMO).
O cientista chinês expulso dos EUA que virou o pai do programa espacial da China
O cientista chinês expulso dos EUA que virou o pai do programa espacial da China. Qian Xuesen ajudou a criar foguetes e mísseis balísticos para Washington, mas foi alvo da histeria anticomunista do macarthismo e virou peça-chave para Pequim transformar o país em uma potência espacial. Fotomontagem (Wikipedia)

Qian Xuesen (1911-2009) foi um renomado cientista e engenheiro aeroespacial chinês, considerado um dos principais responsáveis pelos primeiros desenvolvimentos de mísseis balísticos e foguetes para o governo dos Estados Unidos

Mas a crescente histeria anticomunista gerada pela campanha do senador republicano pelo estado de Wisconsin Joseph McCarthy (1908-1957), durante a década de 1950, resultou em um grande revés para Qian. 

Acusado injustamente de ser simpatizante do comunismo, Qian se tornou alvo do macarthismo, uma época marcada por perseguições políticas e pela chamada caça às bruxas, onde cidadãos estadunidenses e estrangeiros eram acusados sem provas concretas de terem ligações com o comunismo. 

Esse ambiente hostil acabou interrompendo sua colaboração com os Estados Unidos, forçando Qian a retornar à China, onde continuou seu trabalho e desempenhou papel fundamental no desenvolvimento do programa espacial chinês.

Formação nos EUA 

Qian nasceu em Xangai e estudou no Departamento de Engenharia Mecânica da Universidade Nacional de Transportes de Xangai entre 1929 e 1934. Ele chegou aos Estados Unidos em 1935, após ser selecionado para estudar engenharia aeronáutica no prestigiado Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), um dos centros de excelência em engenharia e ciências aplicadas da época. 

Sua estadia no MIT foi marcada por sua inteligência excepcional e habilidades acadêmicas, destacando-se como um dos melhores alunos de sua turma. Lá, ele teve a oportunidade de aprender com alguns dos maiores nomes da engenharia e da física, absorvendo conhecimento de especialistas na vanguarda das pesquisas em aerodinâmica e propulsão.

O tempo de Qian no MIT foi fundamental para sua formação e o desenvolvimento de suas habilidades técnicas, consolidando-o como um dos maiores especialistas em foguetes e sistemas de propulsão. Seu domínio de teoria e prática em propulsão de foguetes moldaria sua carreira futura como cientista e engenheiro aeroespacial.

Embora já estivesse fazendo contribuições valiosas no MIT, Qian decidiu se transferir para o Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech), onde continuou seus estudos e começou a colaborar com Theodore von Kármán, um dos pioneiros mais renomados na área de engenharia de foguetes. 

No Caltech, Qian se uniu a uma equipe de pesquisa de elite dedicada ao desenvolvimento de foguetes militares e balísticos para o governo dos EUA, especialmente durante a Segunda Guerra Mundial. Ele rapidamente se tornou um membro central do grupo, desempenhando papel essencial no desenvolvimento dos primeiros mísseis balísticos, cuja tecnologia seria crucial tanto para os Estados Unidos quanto para o futuro da engenharia aeroespacial.

Trabalho para o Governo dos EUA

Wikipedia - Qian Xuesen tinha o posto de oficial do Exército dos EUA.

Durante a Segunda Guerra Mundial, Qian Xuesen foi recrutado pelo governo dos Estados Unidos para contribuir no esforço de guerra, especialmente no desenvolvimento de tecnologias de mísseis balísticos e sistemas de propulsão avançada. Ele atuou como oficial do Exército dos EUA e integrou uma equipe de cientistas que desempenhou papel crucial no avanço da tecnologia de foguetes, utilizando seus conhecimentos especializados em física de alta velocidade e propulsão de foguetes.

Esse recrutamento ocorreu no início da década de 1940, quando Qian passou a trabalhar diretamente no laboratório de foguetes do Caltech, que mais tarde daria origem ao Jet Propulsion Laboratory (JPL), uma das agências mais importantes de pesquisa espacial da NASA

Sua pesquisa e contribuições no desenvolvimento de sistemas de propulsão e mísseis balísticos foram essenciais para o avanço da tecnologia espacial e militar dos Estados Unidos.

Qian teve uma participação fundamental na criação do foguete de combustível líquido, que foi crucial para os mísseis balísticos da época. Ele também trabalhou no desenvolvimento de foguetes para a aviação militar, contribuindo para a melhoria da capacidade de defesa do país durante e após o conflito.

Nos anos seguintes à Segunda Guerra Mundial, Qian continuou a trabalhar para os Estados Unidos, ajudando a melhorar as tecnologias de foguetes, especialmente no contexto da NASA. 

Seu trabalho foi vital para o avanço dos lançamentos de satélites e outras tecnologias espaciais, consolidando-o como um dos cientistas mais respeitados no campo da engenharia aeroespacial. Sua contribuição não só impulsionou a pesquisa militar, mas também teve um impacto duradouro na exploração espacial.

Alvo da histeria anticomunista

Wikipedia - Qian Xuesen participa de audiência para deportação na Califórnia, em 16/11/1950.

O trabalho de Qian nos Estados Unidos foi interrompido devido ao clima de paranoia política e perseguição comunista que tomou conta do país durante a década de 1950. 

Qian foi acusado, sem provas, de ser comunista durante o auge do macarthismo. Em 1950, ele foi investigado por suas supostas ligações com o Partido Comunista dos Estados Unidos (CPUSA, da sigla em inglês), o que levou à sua prisão e, em seguida, à sua detenção por mais de cinco anos sob acusações de segurança nacional.

Em 1950, com a Guerra da Coreia em andamento e a crescente tensão com a União Soviética, o governo dos Estados Unidos começou a ver Qian com desconfiança. Durante o período de histeria anticomunista, o senador Joseph McCarthy liderou uma campanha para desmascarar comunistas e simpatizantes no governo e nas áreas de pesquisa científica. Qian foi preso e teve seus passaportes confiscados, sendo forçado a enfrentar acusações de espionagem e traição, que nunca foram comprovadas.

Retorno à China

Baidu - Em fevereiro de 1956, Mao Zedong convidou os membros do CCPPC para um banquete e fez questão de colocar Qian Xuesen ao seu lado.

Em 1955, após anos de acusações não comprovadas nos Estados Unidos, Qian Xuesen foi finalmente libertado, mas sob a condição de ser deportado para a China. Esse retorno forçado, embora marcado por adversidades, também sinalizou o início de uma nova fase em sua carreira, em solo chinês.

Ao chegar à China, Qian foi recebido com grande entusiasmo pelo governo comunista, que viu sua volta como uma vitória estratégica, especialmente em um momento em que Pequim procurava consolidar seu programa de defesa e avançar no campo da tecnologia espacial. Sua vasta experiência em engenharia aeroespacial rapidamente o colocou como uma figura central no desenvolvimento científico e tecnológico da China.

Desenvolvimento de mísseis e foguetes

Reconhecendo rapidamente as habilidades excepcionais de Qian, o Partido Comunista Chinês (PCCh) o integrou ao esforço nacional de desenvolvimento de mísseis e foguetes. Ele assumiu um papel de liderança no avanço do programa de defesa e espacial da China, particularmente na criação de foguetes balísticos, essenciais para a defesa militar e a estratégia de dissuasão do país.

Qian foi fundamental para o desenvolvimento de sistemas de propulsão de foguetes, um avanço crucial nos projetos de mísseis de longo alcance da China. Ele também liderou a criação de veículos lançadores de satélites, desempenhando papel vital no programa espacial chinês. 

Sua atuação foi essencial na construção da infraestrutura científica necessária para o desenvolvimento da tecnologia espacial, com destaque para a fundação do Instituto de Engenharia de Foguetes em 1958, que se tornaria uma instituição fundamental para o programa espacial da China.

Reconhecimento

Além de seu trabalho em mísseis e foguetes, Qian também foi um defensor da ciência e da educação, promovendo a formação de cientistas e engenheiros aeroespaciais locais, garantindo que seu legado fosse transmitido às novas gerações. 

Sob sua liderança, a China alcançou marcos importantes no desenvolvimento aeroespacial, incluindo o lançamento bem-sucedido de satélites e o fortalecimento de sua força de mísseis balísticos, colocando o país entre as principais potências militares e espaciais do mundo.

Qian Xuesen não foi apenas celebrado por suas contribuições científicas, mas também por sua capacidade de superar os desafios políticos e culturais que surgiram após sua deportação. Em 1986, tornou-se presidente da Associação Chinesa de Ciências e Tecnologias, e em 1994 foi eleito membro da Academia Chinesa de Engenharia. Em 1991, foi reconhecido com o título de "Cientista de Contribuições Distintas ao País" e a Medalha de Herói Modelo de Primeira Classe. Em 1999, recebeu a Medalha de Mérito pelas Contribuições ao "Dois Foguetes e Um Satélite".

Qian Xuesen foi um membro destacado do PCCh e do Comitê Nacional da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês (CCPPC), além de uma figura-chave na história da engenharia aeroespacial e da defesa do país. Seu trabalho foi fundamental para garantir à China a autonomia tecnológica e científica, permitindo o desenvolvimento de um programa espacial competitivo e independente. 

O legado de Qian permanece um pilar na construção da base científica e tecnológica que possibilitou os sucessos do programa espacial chinês nas décadas seguintes.

O Programa Espacial da China hoje

Xinhua - Selfie do primeiro explorador chinês de Marte, Zhurong (11/6/2021) 

O programa espacial da China, atualmente liderado pela Administração Nacional Espacial da China (CNSA, da sigla em inglês), é um dos mais avançados do mundo. Desde os primeiros passos dados na década de 1950, a China se consolidou como uma potência em tecnologia espacial, e o legado de Qian Xuesen é essencial para entender o desenvolvimento desse programa.

Exploração da Lua e de Marte

A China se destaca pela sua avançada capacidade de exploração lunar. Em 2013, a missão Chang'e 3 fez a China o terceiro país a conseguir aterrissar um módulo na Lua, depois dos EUA e da extinta URSS. Em 2020, a missão Chang'e 5 fez história ao trazer amostras lunares de volta à Terra, um feito inédito em mais de 40 anos. Já em 2021, a missão Tianwen-1 colocou um rover em Marte, tornando a China a segunda nação a realizar tal feito, marcando um marco significativo na exploração interplanetária.

Estação Espacial Tiangong

A China também lançou sua própria estação espacial, Tiangong, com o módulo central Tianhe, em 2021. Este projeto visa, a longo prazo, ter uma estação espacial funcional que permita experimentos científicos e outras pesquisas espaciais. A China, com isso, se junta ao seleto grupo de países capazes de construir e operar uma estação espacial independente, um passo estratégico em seu papel como potência espacial global.

Avanços nos lançamentos e inovações tecnológicas

A China fez progressos consideráveis no desenvolvimento de foguetes, com o Long March sendo o principal veículo de lançamento do país. Além disso, a China tem investido fortemente em tecnologias de satélites, incluindo satélites de comunicação, meteorológicos, de navegação e outros, ampliando sua capacidade de pesquisa e inovação.

O Legado de Qian Xuesen

Fotomontagem Xinhua e Wikipedia - Qian Xuesen na maturidade e um busto dele na biblioteca que leva o seu nome, na Universidade de Transportes de Xangai.

O legado de Qian Xuesen é central para compreender como a China alcançou o nível atual de excelência espacial. Qian foi uma das principais figuras no início do programa espacial chinês, tendo desempenhado papel fundamental na formação das bases científicas e tecnológicas que permitiram à China atingir seus marcos atuais.

Fundação do Programa de Foguetes e Mísseis

Após ser deportado para a China em 1955, Qian se tornou a figura central no desenvolvimento da tecnologia de foguetes e mísseis do país. Ele liderou a criação do programa de mísseis balísticos da China e contribuiu para o desenvolvimento de foguetes de combustível líquido, que se tornaram cruciais tanto para os mísseis balísticos quanto para os lançamentos espaciais.

Avanços em Propulsão de Foguetes

Qian foi fundamental no desenvolvimento de sistemas de propulsão de foguetes, um avanço crucial para os projetos de foguetes de longo alcance da China. Suas pesquisas ajudaram a China a avançar rapidamente em suas capacidades de lançamento, com o primeiro lançamento bem-sucedido de foguetes em 1958.

Fundação de Instituições Espaciais

Sob a liderança de Qian, a China estabeleceu o Instituto de Engenharia de Foguetes, que viria a se tornar um pilar do programa espacial chinês. Qian também desempenhou papel fundamental na criação de infraestruturas científicas para a pesquisa e desenvolvimento de foguetes e na formação de novos cientistas e engenheiros aeroespaciais, garantindo a continuidade do desenvolvimento.

Independência Espacial

O maior legado de Qian Xuesen foi garantir que a China tivesse um programa espacial independente e competitivo. Graças ao seu trabalho, a China conseguiu realizar feitos como o lançamento de satélites e o desenvolvimento de suas próprias capacidades de lançamento, sem depender das tecnologias ocidentais, como as usadas pelo programa Apollo dos EUA.

O legado de Qian é a base sólida que permitiu à China se tornar uma potência aeroespacial global, com um programa espacial avançado e independente, que continua a alcançar grandes marcos, como a exploração lunar e marciana, e a construção de sua própria estação espacial.

 

 

 

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