HISTÓRIA CHINESA

Revolução Cultural: o caos que moldou a China moderna e a liderança de Xi Jinping

De destruição cultural a poder centralizado, descubra como um período turbulento definiu o futuro da potência asiática

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Jornalista que atua em Brasília desde 1995, tem experiência em redação, em comunicação corporativa e comunicação pública, em assessoria de imprensa, em produção de conteúdo, campanha política e em coordenação de equipes. Atuou, entre outros locais, no Governo Federal, na Presidência da República e no Ministério da Justiça; no Governo do Distrito Federal, na Secretaria de Comunicação e na Secretaria de Segurança Pública; e no Congresso Nacional, na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados e na Comissão Mista de Planos, Orçamentos Públicos e Fiscalização (CMO).
Revolução Cultural: o caos que moldou a China moderna e a liderança de Xi Jinping
Revolução Cultural: o caos que moldou a China moderna e a liderança de Xi Jinping. De destruição cultural a poder centralizado, descubra como um período turbulento definiu o futuro da potência asiática. Baidu

A Revolução Cultural (1966-1976) foi uma campanha política radical liderada por Mao Zedong (1893-1976) com o objetivo de preservar e aprofundar os ideais socialistas, eliminando elementos considerados “capitalistas” ou “revisionistas” tanto dentro do Partido Comunista Chinês (PCCh) quanto na sociedade em geral.

Esse período apresenta um conjunto complexo de consequências e lições para o PCCh. Motivada por uma avaliação equivocada de Mao sobre a persistência da luta de classes no socialismo e o suposto perigo de infiltração burguesa no partido, a Revolução Cultural resultou em uma década marcada por caos político, social e cultural em toda a China.

O movimento provocou a paralisação de instituições governamentais e partidárias, perseguições em massa a intelectuais, líderes e cidadãos comuns, além da destruição sistemática do patrimônio cultural chinês. O agravamento da crise foi intensificado pelo personalismo e abusos de poder, especialmente por parte da “Gangue dos Quatro”, que explorou o clima de instabilidade para consolidar sua influência.

Após a morte de Mao, em 1976, o PCCh fez um reconhecimento oficial dos excessos cometidos durante a Revolução Cultural, classificando o período como um grave erro. Com base nas lições aprendidas, o partido promoveu reformas políticas que priorizaram a estabilidade institucional, o fortalecimento do controle democrático interno e a clara separação entre a política formal e as mobilizações de massa.

Essas mudanças abriram caminho para profundas transformações econômicas e sociais, que impulsionaram a ascensão da China como uma potência global nas décadas seguintes, consolidando um modelo de desenvolvimento marcado por pragmatismo e controle político.

A Ruptura Sino-Soviética

Nas décadas de 1950 e início dos anos 1960, a relação entre China e União Soviética — as duas maiores potências socialistas do mundo — começou a se deteriorar devido a divergências políticas, ideológicas e estratégicas profundas. Esse distanciamento, conhecido como ruptura sino-soviética, desempenhou papel crucial na definição das políticas chinesas durante o Grande Salto Adiante e a Revolução Cultural, influenciando decisivamente os rumos internos e externos da China.

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Durante o Grande Salto Adiante (1958–1961), a China buscou acelerar radicalmente a industrialização e coletivização agrícola, adotando uma via independente e mais extrema do modelo soviético. 

Mao Zedong criticava fortemente o que chamava de “revisionismo” soviético — uma suposta flexibilização do comunismo sob Nikita Khrushchev (1894–1971), líder da União Soviética como primeiro Secretário do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) de 1953 a 1964 e como primeiro-ministro de 1958 a 1964. 

Khrushchev ficou famoso por denunciar os excessos de Josef Stalin (1878–1953) — que liderou a URSS entre 1924 até sua morte, em 1953 — em seu histórico “Discurso Secreto” de 1956, no XX Congresso do PCUS, e por promover reformas moderadas, buscando uma “desestalinização” do país. Ele defendia a coexistência pacífica com o Ocidente e uma abordagem mais pragmática na economia soviética, o que gerou tensões ideológicas e políticas com a liderança chinesa, especialmente com Mao.

Mao via essa posição de Khrushchev como uma traição aos princípios revolucionários e rejeitava a interferência soviética no planejamento econômico chinês, insistindo em uma linha autônoma e ideológica.

A União Soviética, por sua vez, desaprovava as políticas radicais chinesas, considerando-as irresponsáveis e prejudiciais. Como resposta, cortou auxílio econômico e tecnológico, exacerbando o isolamento político e econômico da China. 

Esse rompimento enfraqueceu o desenvolvimento do país e fortaleceu o nacionalismo revolucionário de Mao, que passou a defender um modelo autoritário e de massas, rejeitando a tutela soviética.

No cenário internacional, a ruptura exacerbava as tensões da Guerra Fria, posicionando a China como rival independente da URSS no bloco socialista. Internamente, o conflito com Moscou intensificou o clima de desconfiança e combate a qualquer influência considerada “capitalista” ou “revisionista”, alimentando o ambiente político que culminaria na Revolução Cultural.

Mao utilizou o medo da “restauração capitalista” — reforçado pelo confronto com os soviéticos e mudanças internas — para justificar uma ampla campanha de purificação ideológica e controle absoluto. 

A Revolução Cultural foi, assim, uma resposta à crise de liderança e uma tentativa de reafirmar seu poder diante dos desafios internos e externos, mobilizando as massas para eliminar os considerados desviantes, inclusive dentro do PCCh.

As Três Fases da Revolução Cultural

A Revolução Cultural pode ser dividida em três fases principais:

  • Primeira fase (1966-1969): Mobilização massiva das massas populares, especialmente dos jovens Guardas Vermelhos, incentivados por Mao a atacar supostos inimigos internos do PCCh. Marcada por radicalização, caos social, perseguições intensas a intelectuais, autoridades, professores e líderes “revisionistas” ou contrarrevolucionários, e tumultos profundos.
     
  • Segunda fase (1969-1973): Após o 9º Congresso do PCCh e a conspiração fracassada de Lin Biao, iniciou-se uma repressão mais organizada para conter o descontrole, embora a política de “luta contra o revisionismo” se mantivesse. A influência da “Gangue dos Quatro” cresceu, ampliando disputas internas.
     
  • Terceira fase (1973-1976): Intensificação das disputas internas com campanhas políticas como “Criticar Lin, Criticar Confúcio”. Culminou na morte de Mao e na prisão da “Gangue dos Quatro”, simbolizando o fim da Revolução Cultural e abrindo caminho para reformas.

Mao Zedong e a Mobilização da Guarda Vermelha

Zyimg - Guardas Vermelhos de todas as partes do país, segurando o Livro Vermelho nas mãos, se reuniram na Praça Tiananmen para serem inspecionados pelo Presidente Mao.

Para impulsionar a Revolução Cultural, Mao mobilizou jovens estudantes que formaram os Guardas Vermelhos. Com seu apoio direto, esses grupos desafiaram autoridades, atacaram valores tradicionais e perseguiram aqueles considerados portadores de ideias “burguesas” ou “feudais”. O slogan “bombardear o quartel-general” dava carta branca para confrontar até líderes do PCCh.

Os Guardas Vermelhos espalharam a ideologia maoísta e destruíram os “Quatro Velhos”: cultura, hábitos, ideias e costumes antigos. O movimento provocou fechamento de escolas e universidades, perseguição a intelectuais e autoridades, e danos graves ao patrimônio cultural — em Pequim, 30 das 80 principais relíquias foram destruídas, e cerca de 5 mil locais históricos foram afetados.

À medida que se radicalizavam, os Guardas Vermelhos atuaram fora da lei, realizando sessões públicas de acusação, confiscando propriedades e praticando violência. Milhares foram perseguidos, agredidos e mortos. O caos paralisou as estruturas do Partido e do Estado em grande parte do país.

O Livro Vermelho de Mao

Baidu - Livro Vermelho de Mao

Publicado em 1964, o “Livro Vermelho de Mao” (Citações do Presidente Mao Tse-Tung) tornou-se símbolo e guia ideológico da Revolução Cultural. Com pensamentos selecionados de Mao, o livro orientava a ação política e ideológica, destacando temas centrais do maoísmo, como luta de classes e revolução contínua.

Foram impressas centenas de milhões de cópias, tornando-o um dos livros mais publicados da história. Era obrigatório carregá-lo e recitá-lo publicamente, servindo como ferramenta de controle social e uniformização ideológica, incentivando denúncias e purificação política.

O livro contribuiu para a mobilização revolucionária, mas também para repressão e limitação da diversidade intelectual e cultural.

Quem foi a Gangue dos Quatro?

Baidu - A Gangue dos Quatro

A Gangue dos Quatro foi um grupo político altamente influente e controverso que atuou durante os últimos anos da Revolução Cultural (1966-1976) na China. O grupo era composto por quatro membros centrais do Partido Comunista Chinês: Jiang Qing, esposa de Mao Zedong; Zhang Chunqiao, líder político e teórico maoísta; Yao Wenyuan, crítico cultural e propagandista; e Wang Hongwen, um dos líderes mais jovens do partido.

A Gangue dos Quatro soube explorar a turbulência e o caos político da Revolução Cultural para consolidar sua influência, utilizando o movimento para eliminar adversários políticos e promover sua agenda ideológica radical. 

Eles controlavam setores importantes da propaganda, da segurança e da cultura, e eram conhecidos por sua postura autoritária e repressiva. Jiang Qing, em particular, foi figura central na censura artística e cultural, promovendo a arte e o teatro que exaltavam a revolução e suprimindo manifestações contrárias.

Após a morte de Mao Zedong, em 1976, a Gangue dos Quatro foi rapidamente presa pelas forças moderadas dentro do Partido Comunista. Seu julgamento, ocorrido em 1980-1981, foi um evento público que simbolizou o fim da Revolução Cultural e a retomada da ordem na China. Eles foram acusados de crimes que incluíam abuso de poder, perseguição política, incitação à violência e destruição cultural.

Jiang Qing, antes de sua ascensão política, foi atriz de cinema e teatro, o que influenciou seu papel na supervisão das artes durante o período revolucionário.

A captura da Gangue dos Quatro foi considerada um divisor de águas na política chinesa, abrindo caminho para as reformas econômicas e a modernização do país sob Deng Xiaoping.

O julgamento expôs os excessos e os abusos da Revolução Cultural, servindo para responsabilizar membros do partido pelos tumultos e repressões da época.

Apesar da condenação, a figura de Jiang Qing ainda desperta debates e interpretações divergentes na China contemporânea, com alguns a vendo como vítima das lutas internas do partido.

A Gangue dos Quatro representa um dos capítulos mais dramáticos e sombrios da história recente da China, simbolizando tanto o poder concentrado em mãos radicais quanto o custo humano e cultural do extremismo político.

“Criticar Lin, Criticar Confúcio”

Durante a terceira fase da Revolução Cultural, a campanha “Criticar Lin, Criticar Confúcio” atacou Lin Biao, acusado de traição, e o confucionismo, filosofia tradicional vista como retrógrada e obstáculo à modernização socialista. Essa campanha justificou repressão contra símbolos culturais e pessoas rotuladas como “burguesas” ou “contrarrevolucionárias”, intensificando a violência cultural e social.

Décadas após a marginalização durante a Revolução Cultural, o confucionismo é hoje reavaliado e incorporado estrategicamente nas políticas culturais do país. O “novo confucionismo” enfatiza harmonia social, respeito à autoridade e moralidade pública, alinhando-se aos objetivos do PCCh de estabilidade e ordem.

Sob Xi Jinping, o confucionismo é promovido como parte do renascimento cultural nacional, fundamentando a identidade e a coesão política. Também influencia a diplomacia e é ferramenta de soft power, especialmente por meio dos Institutos Confúcio.

Atualmente, há resistências internas ao confucionismo, por temores de retrocessos ideológicos, conflito com o marxismo-leninismo e uso político pragmático sem profundidade teórica. Contudo, seus defensores veem nele uma base ética para a harmonia social e instrumento para fortalecer a identidade nacional e adaptar o socialismo à cultura chinesa.

Xi Jinping e a Revolução Cultural: legado e liderança

Xi Jinping viveu diretamente o caos da Revolução Cultural durante sua infância e adolescência. Filho de Xi Zhongxun, veterano revolucionário, foi enviado ao campo em 1969 como parte da “reeducação” dos jovens urbanos.

Essa experiência influenciou sua prioridade pela estabilidade política, disciplina partidária e controle social rígido. Xi reforça a unidade do PCCh, combate dissidências e evita qualquer instabilidade que ameace o socialismo com características chinesas.

Em seus discursos, ele condena a Revolução Cultural como um período de “graves erros” e destaca a necessidade de liderança forte e centralizada. Sob seu comando, houve intensificação do combate à corrupção e reforço da propaganda estatal — medidas vistas como formas de evitar o ressurgimento de crises similares.

Erros da Revolução Cultural: reconhecimento oficial

Em 1981, o PCCh aprovou a Resolução sobre a História do Partido (1949–1981), reconhecendo que Mao baseou suas ações numa avaliação equivocada da realidade. A luta de classes foi exagerada, e o impacto devastador do movimento foi subestimado.

A Revolução Cultural paralisou instituições, perseguiu e matou milhões, destruiu patrimônio, enfraqueceu o Estado e foi marcada por personalismo e abuso de poder, especialmente da Gangue dos Quatro.

Número de vítimas: Estima-se que dezenas de milhões de pessoas foram perseguidas, humilhadas, presas, torturadas ou mortas durante a Revolução Cultural. Os dados mais confiáveis apontam para pelo menos 1,5 milhões a 2 milhões de mortes diretas e milhões de outros que sofreram graves consequências físicas e psicológicas.

Instituições fechadas: Durante o auge da Revolução Cultural, quase todas as universidades e escolas em todo o país foram fechadas, interrompendo o sistema educacional por anos. Estudantes foram mobilizados para os campos, a produção cultural foi paralisada, e pesquisas científicas sofreram retrocessos significativos.

Patrimônio cultural destruído: Cerca de 30 das 80 principais relíquias culturais protegidas em Pequim foram severamente danificadas ou destruídas. No total, quase 5 mil sítios históricos foram atacados, incluindo templos, manuscritos antigos, obras de arte e monumentos históricos.

Paralisação do Partido e do governo: Relatos oficiais indicam que, no auge da Revolução Cultural, exceto pelo exército, todos os comitês do Partido em vários níveis ficaram paralisados, e muitas organizações locais suspenderam suas atividades, gerando uma crise profunda de governabilidade.

Exílio e “reeducação”: Milhões de jovens urbanos foram enviados para áreas rurais remotas para “aprender com os camponeses” em um processo chamado “reeducação”. Essa prática teve um impacto profundo na vida desses jovens, incluindo Xi Jinping, que passou vários anos nessa condição.

Lições que moldaram a China moderna

A Revolução Cultural, período de intensa convulsão política e social, é oficialmente reconhecida pelo PCCh como “um erro grave cometido pelo líder e explorado por contrarrevolucionários para provocar caos”. A superação desse período turbulento moldou as bases da China contemporânea, ao evidenciar a necessidade de estabilidade política, governança pragmática e planejamento econômico orientado por metas concretas.

A partir de 1978, sob a liderança de Deng Xiaoping, o país iniciou uma nova era marcada pela política de Reforma e Abertura. Em vez de mudanças bruscas, optou-se por uma estratégia gradual e experimental. Zonas Econômicas Especiais (ZEEs), como Shenzhen, foram criadas para testar reformas de mercado sob supervisão estatal. Esse modelo de “cruzar o rio tateando as pedras” garantiu que o crescimento ocorresse com controle e aprendizado institucional.

As lições do passado também reforçaram a centralidade da educação e da ciência e tecnologia como motores do desenvolvimento nacional. O Plano Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, lançado em 1986, e posteriormente a iniciativa Made in China 2025, refletiram esse aprendizado. Investimentos maciços em universidades, pesquisa e inovação transformaram a China em líder global em áreas como inteligência artificial, 5G e energia renovável.

No campo político, o PCCh fortaleceu seus mecanismos internos de controle, supervisão e disciplina. Órgãos como a Comissão Central de Inspeção Disciplinar foram revitalizados para combater corrupção e evitar abusos de poder. Ao mesmo tempo, reformas institucionais limitaram a concentração excessiva de poder pessoal, substituindo o culto à personalidade por uma governança colegiada e institucionalizada — um princípio reafirmado nas resoluções do Partido aprovadas em 1981 e 2021.

A reflexão sobre o período da Revolução Cultural foi incorporada de forma crítica nos documentos oficiais, como a Resolução sobre a História do Partido (1949–1981), que afirmou que o desenvolvimento nacional deve sempre estar a serviço da estabilidade e da unidade do povo.

Apesar do sofrimento vivenciado por milhões, o episódio serviu como um marco de transformação. Estabeleceu as bases para quatro décadas de crescimento contínuo, erradicação da pobreza extrema, modernização das Forças Armadas, expansão da infraestrutura e projeção global por meio de iniciativas como a Nova Rota da Seda.

Hoje, a China encara sua história com a convicção de que a estabilidade institucional, a liderança centralizada e o desenvolvimento com características chinesas são os pilares para garantir prosperidade duradoura e prevenir os erros do passado.

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