GUERRA NA EUROPA

“A Rússia está aqui para sempre”? Novas anexações russas e as implicações na guerra

Diversos acontecimentos estão por trás dessas ações. Nas semanas que precederam os referendos, a Rússia sofreu sérios reveses militares diante da contraofensiva ucraniana na região de Kharkiv, forçando suas tropas a se retirarem de áreas ocupadas

Créditos: YouTube/Reprodução
Por
Escrito en BLOGS el

Entre 23/9 e 27/9, referendos de anexação à Rússia foram realizados pelas administrações de ocupação russas em áreas das províncias ucranianas meridionais de Zaporizhzhia e Kherson (à qual a Rússia adicionou faixas ocupadas da província de Mykolaiiv), bem como pelos governos das Repúblicas Populares de Donetsk (DNR) e Luhansk (LNR), Estados separatistas efetivamente controlados pela Rússia na região do Donbass, no leste da Ucrânia, que também se encontra parcialmente ocupada por forças russas.                                     

Os organizadores anunciaram que as votações resultaram, respectivamente, em 93,11%, 87,05%, 99,23% e 98,42% de apoio à incorporação à Rússia. A confiabilidade desses números, considerando o histórico político da Ucrânia, é altamente duvidosa. Pesquisas de opinião pública e estimativas precedentes à invasão russa de 2022 indicavam que entre 80% e 90% dos habitantes das províncias de Kherson e Zaporizhzhia opunham-se a uma secessão e união à Rússia, embora ambas, como o leste e o sul da Ucrânia com um todo, constituam parte dos redutos históricos do eleitorado pró-russo na Ucrânia. As duas províncias também registraram expressivos protestos e ações de membros das elites políticas regionais, incluindo de partidos pró-russos, condenando a invasão e a colaboração de políticos locais com a ocupação russa.                                                          

Mesmo no caso do Donbass como um todo, onde tendências separatistas pró-russas historicamente tiveram maior expressão, pode-se falar em uma população dividida: uma pesquisa às vésperas da invasão russa mostrou que 42% apoiavam o pertencimento das áreas então sob controle separatista à Ucrânia, chegando a 72% se consideradas somente as respostas dos habitantes dos territórios controlados por Kiev; 31% favoreciam a anexação pela Rússia, sendo 49% entre moradores das áreas já controladas pela DNR/LNR antes da invasão; e menos de 10% apoiavam a independência em ambos os lados do front.

Deve-se chamar atenção, ainda, para o fato de que a realização dos referendos na situação de ocupação, além de violar a soberania da Ucrânia, impossibilitou um processo aberto, transparente e democrático. Parte substancial da população - presumivelmente, composta majoritariamente por opositores da ocupação - saiu dos territórios ocupados em direção a outras regiões da Ucrânia e ao exterior desde o início da invasão russa. Nas áreas sob ocupação, o acesso à internet, redes sociais e meios de comunicação em geral vem sendo restringido e censurado conforme os interesses russos. O ambiente político autoritário e intimidador também é ilustrado pelos registros de detenções arbitrárias, desaparecimentos forçados e tortura de habitantes das regiões ocupadas, incluindo opositores da ocupação russa ou suspeitos como tais, como relatam, entre outros, documentos do comissariado de direitos humanos da ONU e da ONG Human Rights Watch.

Dadas as circunstâncias políticas e militares do momento, contudo, pesaram os interesses de Vladimir Putin. Em 30/9, Putin, seguindo os ritos da anexação da Crimeia (março de 2014), recebeu representantes da DNR, da LNR e das administrações de ocupação das províncias de Kherson e Zaporizhzhia para assinar tratados de anexação à Rússia, decisão que deve ser confirmada pelo parlamento russo.

Anexações buscam elevar o moral russo e pressionar Ucrânia e potências ocidentais

Rumores, indicações e preparações para os referendos de anexação vinham ocorrendo há meses. A situação nas frentes de batalha, contudo, obstruía uma decisão final. Há um mês, por exemplo, o líder da DNR, Denis Pushilin, afirmava que o referendo ocorreria somente após a tomada completa da província de Donetsk, objetivo militar que não foi atingido até o momento de declaração das anexações. Como explicar, então, a abrupta decisão russa pela organização “imediata” dos referendos e anexações?

Diversos acontecimentos estão por trás dessas ações. Nas semanas que precederam os referendos, a Rússia sofreu sérios reveses militares diante da contraofensiva ucraniana na região de Kharkiv, forçando as tropas russas a se retirarem de áreas ocupadas. Essas perdas parecem ter abalado significativamente Moscou e se tornaram motivo de fortes críticas de setores mais linha dura do país sobre a condução da guerra pela liderança russa, além de suscitarem o espectro de perdas de outras áreas ocupadas pela Rússia.

Um outro acontecimento importante ocorreu em setembro. O governo ucraniano publicou um projeto de garantias de segurança que não só reafirmou o intento ucraniano de entrada na OTAN, como propôs o aprofundamento da cooperação militar com os membros da aliança, de forma a elevar a capacidade militar do país, e a inexistência de restrições ao tamanho e potencial das forças armadas ucranianas (na sequência das declarações de anexações russas, o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, anunciou a solicitação de entrada da Ucrânia na OTAN em regime acelerado). O documento também implicita que as garantias se estenderiam a áreas fora do controle de Kiev - como a Crimeia, os territórios sob controle da DNR/LNR e as regiões ocupadas em 2022. Assim, a Ucrânia sinalizou um novo afastamento em relação a cruciais demandas do governo russo, como a neutralidade da Ucrânia (i.e., o não ingresso na OTAN) e aquilo que o governo russo chama de “desmilitarização” da Ucrânia, isto é, a limitação do potencial militar do país. Moscou também buscava de Kiev o reconhecimento da anexação da Crimeia e das independências da DNR e da LNR.                     

Anteriormente, o governo ucraniano, em troca de garantias de segurança, chegou a demonstrar abertura para o status de neutralidade, negociações sobre a situação no Donbass e a abdicação de tentativas de retomada da Crimeia pela via militar. Todavia, conforme a mídia ucraniana e russa, as negociações, após avanços iniciais, estão praticamente congeladas desde abril. A Ucrânia afastou-se desse processo, fato atribuído principalmente à persuasão do ex-primeiro-ministro britânico, Boris Johnson (que questionava a interlocução com Putin), e às revelações de crimes de guerra cometidos por forças russas na região de Kiev. O governo ucraniano, além disso, passou a afirmar de maneira mais veemente o objetivo de recuperar todos os territórios sob controle russo e separatista.

Diante desses fatores, as anexações buscam alcançar os seguintes objetivos. No âmbito externo, a Rússia, ao tratar as regiões anexadas como parte de seu território, pode intensificar as ameaças de escalada militar, inclusive na direção nuclear, contra a Ucrânia e seus apoiadores ocidentais. Dessa maneira, o governo russo espera dissuadir ações militares ucranianas e forçar negociações de resolução do conflito em parâmetros mais favoráveis para Moscou. As anexações, ademais, constituem uma retaliação à postura do governo ucraniano quanto às demandas russas para a resolução do conflito. Já no âmbito doméstico, Putin objetiva elevar o moral russo diante das recentes derrotas militares, mobilizar a elite russa em torno de seus planos e apresentar a seus apoiadores na elite e na sociedade russas uma conquista tangível da campanha militar, após meses de incertezas e diversos recuos forçados pelas ações militares ucranianas.            

Um caminho sem volta?

No discurso em que anunciou a “operação militar especial” russa, em fevereiro, Putin afirmou que a Rússia não planejava ocupar territórios ucranianos. Informações de bastidores veiculadas na mídia apontam que a Rússia, durante negociações com a Ucrânia, também teria sinalizado abertura para se retirar de pelo menos parte dos territórios ocupados em 2022 em troca de concessões de Kiev, como a neutralidade e a renúncia a todo o Donbass. Tais informações sugerem que os planos de anexação podem ter se transformado e ganhado força no decorrer da guerra, pautados pela situação militar e os rumos das negociações com a Ucrânia.

Para Moscou, as anexações objetivam finalizar um processo de integração ao Estado russo que já vinha ocorrendo durante a ocupação, sob slogans como “A Rússia está aqui para sempre”. Um exemplo disso é que o russo foi declarado como língua oficial. Em áreas como segurança, saúde pública e educação, os territórios ocupados já vinham, em maior ou menor grau, sendo administrados conforme o aparato estatal russo. Além disso, o rublo russo foi introduzido como moeda a substituir a hryvnia ucraniana. A concessão de cidadania russa, realizada nos territórios controlados pela DNR/LNR desde 2019, foi estendida para as províncias de Kherson e Zaporizhzhia durante a ocupação russa. No período de ocupação, oficiais russos foram nomeados para órgãos político-administrativos nas quatro regiões.

Vale mencionar, por fim, os esforços propagandísticos empreendidos na tentativa de legitimar a presença russa, centrados particularmente na manipulação de dois elementos historicamente presentes nas sociedades das áreas ocupadas: o uso extenso da língua russa e índices mais pronunciados de rejeição a certos elementos do nacionalismo ucraniano, de marcadas tendências antirrussas e antissoviéticas, que ganharam força no contexto de confrontação entre Ucrânia e Rússia desde 2014. A Rússia e seus colaboradores locais nas administrações de ocupação, diversos dos quais egressos de partidos e organizações pró-russas na Ucrânia, investiram em uma narrativa segundo a qual os territórios ocupados teriam sido “liberados” de um regime nacionalista ucraniano que oprimia a língua russa e identidades regionais. Em linha com temas recorrentes nas falas de Putin sobre a Ucrânia, como as teses da unidade entre russos e ucranianos e da artificialidade histórica das fronteiras da Ucrânia independente, o passado das regiões ocupadas na Rússia tsarista a na União Soviética vem sendo invocado na tentativa de desqualificar a experiência histórica da Ucrânia independente. A promessa de prosperidade socioeconômica em união com a Rússia tem sido outro elemento característico da construção ideológica pró-anexação.

Poderá a Ucrânia reverter as anexações russas? Uma vez que as regiões anexadas sejam consideradas pela Rússia como parte integral de seu território, é difícil imaginar um cenário de devolução acordada, por exemplo, no âmbito de negociações. Um recuo desse tipo não só abalaria a credibilidade de Putin - que sinalizou enfaticamente a irreversibilidade das anexações - e atingiria o orgulho de grande potência fortemente presente na elite política e na sociedade russas, como significaria uma renúncia a importantes ativos geopolíticos, como o fortalecimento da presença russa nos mares Negro e de Azov por meio do controle do litoral das províncias de Kherson e Zaporizhzhia.

Restaria, então, o uso da força. Como ilustram os ataques na Crimeia durante a guerra, por vezes assumidos abertamente por Kiev, o fato de determinada região ser considerada pela Rússia como parte de seu território não tem inibido por completo ações militares ucranianas em tais áreas. Ademais, nos territórios ocupados em 2022, têm ocorrido ações típicas de movimentos de resistência, como a sabotagem e ataques a membros das administrações de ocupação russas. O governo ucraniano sinaliza o intento de lutar pela recuperação dos territórios anexados e indisposição para negociar com Putin, de modo que um desfecho político e militar está em aberto.

Há, contudo, um potencial problema para a Ucrânia: a forte dependência das potências ocidentais, particularmente na área militar. É verdade que esse apoio tem sido essencial para viabilizar a defesa da Ucrânia. A julgar por declarações recentes, o apoio ocidental não deve ser interrompido diante das novas ações da Rússia. Por outro lado, tem havido esforços para gerir tal apoio de modo a mitigar riscos de escalada para um conflito direto entre as potências ocidentais e a Rússia. Com o aumento desses riscos provocados pelas novas anexações, é possível que as potências ocidentais se vejam forçadas a pressionar a Ucrânia por algum tipo de compromisso com Moscou. Os jogos entre as grandes potências, portanto, devem assumir importância ainda maior nos rumos da Guerra Russo-Ucraniana.

*Gustavo Oliveira é doutorando em Relações Internacionais pelo Programa San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, PUC-SP) e pesquisador do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI/PUC-SP) e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU).

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.