CYNARA MENEZES
Âncora da Fox News e uma das mais influentes personalidades de extrema direita dos EUA, o apresentador Tucker Carlson veio ao Brasil com uma missão: tentar defender Jair Bolsonaro de ser o líder autoritário, negacionista e destruidor da floresta amazônica que a mídia internacional pinta. O que Carlson fez com Bolsonaro foi uma operação de "bolsowashing", uma tentativa de lavar a imagem internacional do presidente, uma peça de propaganda. A "entrevista" é tão chapa branca, mas tão chapa branca, que até parece matéria paga.
É como se o papel de Carlson como entrevistador fosse fornecer ao mundo um "outro lado" para as acusações feitas ao presidente brasileiro, sem contrastar nada com a realidade dos fatos, como todo bom profissional. Foi capaz, inclusive, de elogiar a atuação de Bolsonaro na pandemia sem mencionar os quase 700 mil mortos no país, e de citar a Amazônia sem perguntar ao mandatário sobre os bárbaros assassinatos do jornalista Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira na região, ocorridos há um mês. Uau.
Para criticar os jornalistas da mídia norte-americana liberal que "atacam" Bolsonaro, o âncora da Fox News os acusou de "nem pesquisar na Wikipedia" sobre o Brasil. Mas, na "entrevista" de meia hora que fez com o presidente, percebe-se que ele não seguiu o próprio conselho
Negacionista ele mesmo, Tucker Carlson não se vacinou contra a Covid-19 e já espalhou inúmeros boatos e teorias da conspiração sobre a pandemia e outros temas, como dizer que os democratas planejam colocar anticoncepcionais na água. A "teoria da grande substituição", segundo a qual os brancos norte-americanos seriam deliberadamente substituídos (!!!) por hispânicos, muçulmanos e negros, largamente difundida pelo âncora em mais de 600 episódios de seu show na Fox News, foi citada pelo jovem de 18 anos que matou 10 pessoas, negras em sua grande maioria, e feriu outras três em um supermercado de Buffalo, em maio. Desde então, Carlson passou a negar ter sido o principal difusor da teoria supremacista.
Para criticar os jornalistas da mídia norte-americana liberal que "atacam" Bolsonaro, o âncora os acusou de "nem pesquisar na Wikipedia" sobre o Brasil. Mas, na "entrevista" de meia hora que fez com o presidente, o âncora cometeu ou permitiu que ele cometesse nada menos que 22 notícias falsas sobre o Brasil, uma mentira a cada um minuto e meio de conversa. Sem nem uma contestação sequer. Deveria ter seguido o próprio conselho.
Confira as mentiras ditas durante os 30 minutos de conversa entre Tucker Carlson e Bolsonaro.
1. A China está colonizando a América Latina e o Brasil é o último aliado dos EUA no continente
Fonte: vozes da cabeça de Carlson. A China é o maior parceiro comercial do Brasil, mas também é o maior parceiro comercial dos EUA e o maior parceiro comercial da União Europeia. Além disso, há uma diferença entre ser "aliado" e estar subjugado pelos EUA como faz a direita. Durante os anos do PT no governo, não houve qualquer animosidade diplomática entre o Brasil e os EUA. Pelo contrário, Lula se dava muito bem com George W. Bush e o presidente Barack Obama chamou o presidente brasileiro de "o cara", lembram?
2. A mídia dos EUA odeia Bolsonaro porque ele, ao contrário de Joe Biden, combate a colonização chinesa
Ahn? Os EUA estão em plena disputa com a China, com Biden ameaçando o país de sanções se houver apoio à Rússia na guerra contra a Ucrânia. O presidente norte-americano também já falou que uma tomada de Taiwan pela China será combatida militarmente pelos EUA.
3. Bolsonaro é liberal
Isso é uma tentativa de fazer parecer que Bolsonaro não é um conservador, como é, e tampouco de extrema direita, como também é. De "liberal" o presidente brasileiro não tem nada. Nem nos costumes, nem mesmo na economia, apesar de algumas medidas do governo dele terem sido apoiadas pelo oportunismo liberal e a mídia que o representa. Um liberal de araque –e quem diz isso são os próprios liberais.
4. Bolsonaro não fez nada contra as liberdades individuais no Brasil
Se Tucker Carlson tivesse "ido à Wikipedia", constataria diversos atentados de Bolsonaro contra a liberdade de expressão e imprensa. Desde que chegou ao Planalto ele já usou o ministério da Justiça para enquadrar jornalistas e cartunistas na Lei de Segurança Nacional, da época da ditadura militar; praticou assédio moral contra repórteres que cobrem a presidência e foi inclusive multado pela Justiça em 100 mil reais por isso; mandou prender uma manifestante por bater panela contra ele em uma motociata; e até mesmo mandou investigar um sociólogo por conta de um outdoor onde era comparado a um pequi roído.
5. A esquerda tentou assassinar Bolsonaro
Ao contrário do que afirmou Carlson e vivem repetindo os bolsonaristas, nunca foi apontado nenhum envolvimento de partidos de esquerda na facada que vitimou Bolsonaro em 7 de setembro de 2018 e que foi fundamental para sua eleição. Adélio Bispo, o homem com comprovados problemas mentais que teria desferido o golpe, foi filiado ao PSOL no passado, mas em 2018 já estava fora do partido havia quatro anos: se desfiliou em 2014 por conta própria. Dizer que a esquerda tentou assassinar Bolsonaro, como fez o âncora da Fox, é simplesmente ampliar uma fake news do bolsonarismo para o mundo.
6. A esquerda contratou advogados renomados para defender Adélio, o autor da facada
Isso jamais aconteceu. Adélio é defendido por Zanone Manuel de Oliveira Júnior e outros três advogados sob seu comando, todos desconhecidos. Em entrevistas, inicialmente Zanone disse que era pago por fiéis da igreja Testemunhas de Jeová, depois disse que o fazia de graça para "ganhar mídia". Recentemente um dos advogados também disse em entrevista que o financiador do grupo, não identificado, age por "amor ao próximo". Nunca foi apontada, nem pelo Ministério Público nem pela Polícia Federal, nenhuma ligação dos defensores de Adélio com partidos de esquerda.
Para “provar” que Bolsonaro atuou bem na pandemia, Carlson optou por não citar quantos mortos o Brasil teve, o que certamente avalizaria o que estava dizendo. Se agiu certo, morreu pouca gente, correto? Para que mencionar os 670 mil mortos e estragar a teoria?
7. A oposição a Bolsonaro é composta de professores universitários, bilionários e a CNN
Mas gente! Na hora em que o apresentador norte-americano falou isso, Bolsonaro até riu amarelo. Para dizer uma bobagem dessas, o âncora da Fox News deve desconhecer que, de acordo com as pesquisas, Lula é o favorito entre os eleitores das classes mais baixas, enquanto os mais ricos preferem Bolsonaro. Ou seja, os "bilionários" apoiam o presidente. A CNN, que Tucker Carlson pensou ser igual à dos EUA, estreou no Brasil apenas em 2020, dois anos após a eleição, e a primeira coisa que fez foi entrevistar Bolsonaro.
8. Bolsonaro não entregou postos-chave do governo a partidos políticos
Como não fez o dever de casa de todo bom jornalista, Tucker Carlson nunca ouviu falar em "centrão" e muito menos em "orçamento secreto", que tem tornado possível a Bolsonaro aprovar no Congresso praticamente tudo que propõe. Em março do ano passado, o presidente trocou seis ministérios para acomodar o centrão. Apenas três partidos do centrão (PP, PL e Republicanos) comandam pelo menos 32 pontos-chave na administração federal, que somam quase 150 bilhões de reais em recursos.
9. Lula ataca cristãos
O ex-presidente Lula jamais atacou membros de nenhuma religião, muito menos os cristãos, até porque ele mesmo é cristão. O PT, partido que fundou, também tem fortes raízes na esquerda católica. Ou a Teologia da Libertação deixou de ser cristã? Essa mentira está sendo repetida e espalhada pelos bolsonaristas utilizando montagens toscas com vídeos de Lula entre representantes de religiões de matriz africana –aliás, as principais vítimas de atentados por intolerância religiosa, que cresceu durante o governo Bolsonaro.
10. Lula empresta dinheiro a ditadores
O governo chegou a gastar 48 milhões de reais para fazer uma auditoria e "abrir a caixa-preta do BNDES", como Bolsonaro havia prometido aos fanáticos que o seguem, mas não encontrou nenhuma irregularidade. A ponto de o próprio presidente reconhecer que a tal caixa-preta "nunca existiu". A conversa de "emprestar dinheiro a ditadores" é só isso, conversa fiada para enganar trouxa. Fake news.
Um jornalista que vem ao Brasil sem saber o que significa a bancada da Bíblia, da Bala e do Boi em torno de Bolsonaro é só mais um parça do mito, um minion. Não importa se é gringo ou fala português, se trabalha numa TV do interior ou numa das maiores emissoras do mundo
11. As pesquisas são manipuladas para favorecer Lula
Só mesmo um jornalista incompetente e mal informado para acreditar que as pesquisas de opinião no Brasil, financiadas por corretoras de valores ou ligadas a empresas de comunicação, sejam manipuladas para favorecer Lula. Só acredita nisso quem não tem nenhuma informação sobre o Brasil e sobre a ferrenha oposição que Lula sempre sofreu da mídia e sofre até hoje.
12. Alguém usou documentos de Adélio para entrar na Câmara e forjar um álibi para ele
Outra mentira de Bolsonaro que o "experiente jornalista" norte-americano engoliu porque não estava interessado na verdade dos fatos e sim em fazer propaganda para o presidente. O próprio site da Câmara esclareceu na época que o único registro de entrada de Adélio no local aconteceu em 6 de agosto de 2013. Como o funcionário da Casa atualizou as informações no dia do atentado, ocorreu o erro no sistema.
13. Toda a mídia brasileira está contra Bolsonaro
Mimimi. Bolsonaro é apoiado abertamente por três emissoras de TV –Rede TV!, Record e SBT– e timidamente pela Band. Na entrevista, o presidente faz questão de citar o "bom trabalho" feito pelo programa Os Pingos nos Is, da Jovem Pan, órgão oficial do bolsonarismo. CNN e Globo mantêm certo equilíbrio, sendo que a segunda tem destacado mais os escândalos do governo. Na mídia impressa, não se pode dizer tampouco que os três maiores jornais (O Globo, Folha e Estadão) façam oposição a Bolsonaro, porque a maior intenção deles parece ser tentar provar para o povo que Lula é igual ao defensor de tortura que ocupa o Planalto. Em termos regionais, alguém minimamente informado pode acusar a Gazeta do Povo de ser contra Bolsonaro?
14. Bolsonaro foi o único governante do mundo que fez a coisa certa na pandemia
Se Jair Bolsonaro, negacionista da pandemia e da vacina, promotor de tratamento precoce que não funciona, sabotador do lockdown e da máscara, fez "a coisa certa", imagina quem fez a coisa errada. Mas, para "provar" que o que está dizendo é verdade, Carlson optou por não citar quantos mortos o Brasil teve na pandemia, o que certamente avalizaria o que estava dizendo. Se agiu certo, morreu pouca gente, correto? Para que mencionar os 670 mil mortos e estragar a teoria?
15. O spray nasal que os bolsonaristas foram conhecer em Israel é o mesmo que está sendo aprovado agora
Bolsonaro, na maior cara dura, contou para Tucker Carlson que o governo mandou uma comitiva até Israel para conhecer um spray nasal que curaria a Covid-19 e a mídia na época ridicularizou, mas agora a eficácia do produto estaria sendo comprovada. O jornalista reage extasiado. Acontece que a vacina em spray nasal que está sendo testada agora não tem rigorosamente nada a ver com o spray nasal de Israel, que era um remédio.
16. Tratamento precoce à base de hidroxicloroquina e ivermectina funciona
A promoção pela enésima vez do "tratamento precoce" que não funciona veio em resposta à pergunta do entrevistador sobre por que Bolsonaro não tomou a vacina. O presidente brasileiro disse que na África subsaariana os índices de Covid-19 foram menores porque eles tomam muita ivermectina contra verminose e hidroxicloroquina contra a malária, por isso teriam ficado "protegidos" do vírus, o que já foi comprovado ser falso. Bolsonaro já havia tuitado dizendo que a Etiópia tem números baixos por causa da ivermectina e foi desmentido por especialistas. Além disso, o remédio deixou de ser distribuído nos países africanos pelo Programa Africano para Controle da Oncocercose em 2015.
17. Durante a guerra do Pacífico, soldados tomaram água de coco na veia
Essa deve ter sido invenção do saudoso Olavão. Não se sabe de onde Bolsonaro tirou isso, mas ele já repetiu várias vezes que durante a guerra do Pacífico (1879 a 1883), conflito entre o Chile e as forças conjuntas da Bolívia e do Peru, soldados tomaram água de coco na veia em substituição a "medicamentos". Essa é uma velha lenda da internet, desmentida várias vezes, que Bolsonaro tomou como verdade para justificar o uso de remédios que ainda não tiveram comprovação científica como, é claro, a hidroxicloroquina e a ivermectina. Essa cascata da água de coco na veia já foi usada em inúmeros memes e piadas com o "vampiro vegano". Tucker Carlson engoliu sem pestanejar.
18. A maioria dos esquerdistas é ateu
Essa afirmação não faz nenhum sentido. Segundo uma pesquisa feita pelo Datafolha, apenas 1% da população brasileira se identificam como ateus. E, de acordo com outra pesquisa do mesmo Datafolha, 49% da população se identificam com ideias de esquerda. Os números simplesmente não batem, é simplesmente chutômetro, uma mentira.
Não se sabe de onde Bolsonaro tirou isso, mas ele já repetiu várias vezes que, durante a guerra do Pacífico (1879-1883), soldados tomaram água de coco na veia em substituição a "medicamentos". Deve ter sido invenção do saudoso Olavão
19. Se Lula for eleito, indicará dois ministros pró-aborto para o STF
Falácia de Bolsonaro para amedrontar os evangélicos. Hoje, a tendência no Brasil é de que a questão da descriminalização do aborto seja decidida pelo Congresso Nacional e não pelo Supremo. Já existem movimentos tanto na Câmara quanto no Senado para que a decisão seja dos deputados e dos senadores, mesmo movimento que aconteceu no Uruguai e na Argentina, países onde o aborto foi descriminalizado. No Chile, a descriminalização está prevista no anteprojeto da nova Constituição. Só na Colômbia o aborto foi legalizado por uma decisão da Corte Suprema.
20. A culpa do desmatamento não é de Bolsonaro, mas da China
Os números não mentem: o desmatamento na Amazônia cresceu 56,6% durante o governo Bolsonaro. E a culpa é da China? Oi?
21. O governo Bolsonaro está trabalhando contra os incêndios ilegais na Amazônia
Mentira cabeluda: desde que assumiu, o que Bolsonaro fez foi desmontar a política ambiental brasileira, esvaziando e aparelhando os órgãos de fiscalização, além de reduzir o orçamento destinado a eles. O IBAMA teve um encolhimento de fiscais, cortados à metade, e sua estrutura, sucateada. O ICMBio, que gerencia 9,3% do território nacional e 20% das águas brasileiras, sofreu um corte de 7 milhões de reais. A FUNAI parece defender os garimpeiros e não os indígenas. A Amazônia vive uma situação de bangue-bangue, com dois Estados da região liderando os números de mortes por armas de fogo no país: Amazonas e Amapá.
22. Bolsonaro está sozinho
Tucker Carlson tentou o tempo inteiro pintar Jair Bolsonaro como uma espécie de guerreiro solitário, um "nacionalista" que luta contra tudo e contra todos. Se tivesse "ido à Wikipedia", saberia que o presidente conta com o apoio da elite mais tosca, de parte significativa dos militares saudosistas da ditadura, com o apoio substantivo do agronegócio, com o apoio quase completo dos pastores evangélicos fundamentalistas, e da indústria da arma. Um jornalista que vem ao Brasil sem saber o que significa a bancada da Bíblia, da Bala e do Boi em torno de Bolsonaro é só mais um parça do mito, um minion. Não importa se é gringo ou fala português, se trabalha numa TV do interior ou numa das maiores emissoras do mundo.