Após a desistência do atual presidente dos Estados Unidos Joe Biden em concorrer à reeleição e seu endosso à vice-presidenta Kamala Harris como sua substituta, a pressa passou a ser a tônica de boa parte do Partido Democrata. A 107 dias da eleição, o tempo é curto para consolidar seu nome e muitos entendem que não haveria como viabilizar outra candidatura. Até porque ninguém se apresentou para a disputa e durante os últimos anos nenhum nome relevante foi trabalhado para eventualmente entrar na corrida presidencial.
E Harris, diferentemente de outras possibilidades, herdaria os US$ 96 milhões já arrecadados por Biden por fazer parte da chapa, ainda que o Comitê Nacional Republicano provavelmente entre com ações judiciais relacionadas à potencial transferência e uso do dinheiro da campanha de Biden, de acordo com o The New York Times.
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Os apoios de figuras proeminentes da legenda, como os de Bill e Hilary Clinton, da poderosa senadora democrata Patty Murray, de sua ex-adversária nas primárias de 2020, a também senadora Elizabeth Warren, e do governador da Pensilvânia Josh Shapiro (um forte candidato a vice), mostram a formação de uma corrente em torno de seu nome que não deixa espaço para dúvidas e torne sua candidatura inevitável, procurando conter qualquer possibilidade de uma disputa franca que fragilize ainda mais uma campanha presidencial conturbada.
Por outro lado, o ex-presidente Barack Obama não foi tão pronto em endossá-la publicamente no domingo (23), assim como a ex-presidenta da Câmara dos Deputados Nancy Pelosi e o senador Bernie Sanders, nome mais proeminente da ala à esquerda da sigla. O deputado Lloyd Dogget, do Texas, o primeiro parlamentar a pedir a renúncia de Biden à postulação presidencial, também não a apoiou publicamente.
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Ainda assim, a candidatura de Kamala Harris é de longe a mais viável e deve se concretizar em pouco tempo. Mesmo quem defende um “processo aberto, responsivo e democrático” para escolher o novo indicado, como o senador Richard Blumenthal, de Connecticut, demonstra estar ao lado dela. Democratas diferem da forma da indicação, mas não do nome.
A campanha de Kamala Harris em 2020
Em sua curta caminhada à presidência, Kamala Harris terá que fazer diferente do que realizou em sua campanha para a nomeação democrata em 2020, que nasceu oficialmente em janeiro de 2019 e terminou em dezembro do mesmo ano.
Como lembra o Vox, a então senadora da Califórnia era uma estrela em ascensão em uma corrida aberta que contava com diversos nomes. Um levantamento da Universidade de Monmouth divulgado uma semana após sua entrada na disputa mostrou que ela estava em terceiro lugar, atrás apenas de Biden e de Sanders.
O cenário mudaria nos meses seguintes. Ao buscar um eleitorado mais amplo em termos de espectro ideológico, ela foi errática entre a esquerda e o centro do partido. Em um primeiro momento, adotou o Medicare for all de Sanders, para depois lançar sua própria versão que assegurava um papel de destaque as seguradoras privadas. Como ex-procuradora-geral, também passou a defender uma reforma da Justiça Criminal, mas seu posicionamento dúbio em relação a políticas de repressão deixaram a esquerda da legenda insatisfeita e não seduziram os demais.
Muito disso se deve ao fato de a campanha de Harris ter contado com um comando traumático. Dividida em dois polos, um era dirigido pelo gerente de campanha Juan Rodriguez, que contava com o apoio de empresa de consultoria política californiana e defendia que a senadora buscasse uma coalizão ampla de eleitores primários. Já Maya Harris, irmã da pré-candidata, tinha uma visão progressista que entrava em choque com Rodriguez durante quase todo o tempo.
Mesmo o que seria um bom momento de sua campanha se perdeu rapidamente, quando, em um debate entre os pré-candidatos realizado em junho, ela criticou Joe Biden por se opor ao transporte escolar obrigatório na década de 1970 como forma de combater a segregação racial nas unidades de ensino. "Havia uma garotinha na Califórnia que fazia parte da segunda turma a integrar suas escolas públicas e ela era levada de ônibus para a escola todos os dias. Aquela garotinha era eu!", disse na ocasião.
A discussão era relevante, já que, mesmo com o fim da segregação racial nas escolas em 1954, muitos bairros em todo o país permaneceram segregados por conta das condições de moradia e práticas de discriminação, o que poderia ser revertido em parte pela oferta de transporte. Harris arrecadou US$ 2 milhões em doações nas primeiras 24 horas após o debate, àquela altura, a maior quantia de dinheiro que sua campanha havia conseguido no período de um dia. Camisetas com a frase “Aquela garotinha era eu” passaram a ser vendidas por US$ 29,99 cada.
Mas logo a campanha de Biden reagiu e Harris não conseguiu dar uma resposta consistente sobre se acreditava que o transporte escolar obrigatório pelo governo federal deveria ser usado para integração escolar em áreas onde a segregação não era resultado de leis discriminatórias. Na ocasião, uma assessora de campanha de Biden aproveitou para tuitar que Harris estava "se complicando ao tentar não responder à pergunta que ela mesma fez" ao vice-presidente.
Ao longo dos meses, Harris foi perdendo pontos nas pesquisas, chegando a 6% e ocupando uma quinta colocação no último mês de 2019. O dinheiro de arrecadação também parou de fluir. Ela se retirou da disputa em dezembro e, dias depois, anunciou apoio a Joe Biden.
Uma nova corrida presidencial para Harris
Diante do primeiro presidente em exercício que abre mão da possibilidade de reeleição desde Lyndon Johnson, em 1968, Kamala Harris tem uma estrutura muito maior e provavelmente com um partido em torno de si, situação bem diferente daquela vivida por ela em 2020.
Sua lealdade foi destacada por Joe Biden em seu comunicado de renúncia da candidatura e, em parte por isso, seu papel como vice acabou ofuscando sua figura política, já que ela encampou as diretrizes do presidente e evitou questões de cunho mais ideológico ou controverso por conta da natureza de seu cargo. A partir de agora, terá a oportunidade de definir a forma como vai se apresentar ao país.
O lado republicano já escolheu suas armas. O presidente da Câmara dos Deputados, Mike Johnson, defendeu que Biden renuncie ao cargo "ineditamente", argumentando que "se Joe Biden não está apto a concorrer à presidência, ele não está apto a servir como presidente". Outros parlamentares republicanos ecoaram o discurso.
A aposta é no caos. Contestar Biden e fomentar a versão de que um entorno de pessoas próximas e assessores protege o presidente para governar em seu lugar. E Kamala Harris faria parte dessa "conspiração", em um cenário no qual sua lealdade passa de virtude a defeito. A demora do atual presidente em sair da disputa já cobra seu preço. E Harris terá que arcar com isso, precisando fazer uma campanha com poucos erros.