*Matéria publicada originalmente no Substack de Glauco Faria
Na terça-feira (7), os eleitores de Ohio, nos Estados Unidos, aprovaram uma iniciativa em referendo que legaliza o uso recreativo da maconha para pessoas maiores de 21 anos. Foram mais de 2,1 milhões de votos favoráveis, o equivalente a 57% daqueles que foram às urnas.
Os Estados Unidos tiveram eleições em diversos estados, para cargos distintos, colocando em votação também algumas iniciativas legislativas. Agora são 24 estados no país que legalizaram o uso recreativo da substância, somando 54% da população estadunidense, de acordo com dados do The Washington Post. Neste ano, também foram aprovadas propostas semelhantes em Delaware e Minnesota. Em 38 estados é permitida a utilização da cannabis medicinal.
O caso de Iowa é significativo por vários motivos. Primeiro, porque ilustra uma mudança relativamente rápida, em termos históricos, da opinião pública sobre o tema. Em 2015, o estado também incluiu como pergunta em referendo a mesma questão colocada em votação na terça-feira, e, à época, foi rejeitada por 64,10% a 35,9%.
Outro ponto importante é que se trata de um estado em que Donald Trump superou Joe Biden, em 2020, por 53,3% a 45,2%. Mas a questão parece estar ultrapassando preferências político-ideológicas: estados com maioria republicana já haviam aprovado o uso recreativo, como o Alasca, em 2015; Montana, em 2021, e o Missouri, em 2022.
“Política fracassada de proibição”
A proposta ainda pode ser alterada pelos legisladores estaduais, mas deve entrar em vigor em 30 dias. O texto original estabelece a posse de até 2,5 onças (equivalente a 70,8738 gramas) de maconha, além de 15 gramas da modalidade concentrada. E cada adulto pode ter até seis plantas para uso pessoal, com um máximo de 12 plantas por unidade familiar.
O Departamento de Comércio do estado vai criar uma Divisão de Controle de Cannabis para “licenciar, regular, investigar e penalizar operadores de cannabis para uso adulto, laboratórios de testes de uso adulto e indivíduos que precisam ser licenciados”. A proposta prevê a implementação de um imposto sobre vendas de 10% cobrado sobre as vendas de cannabis, com a receita dividida em finalidades distintas: 36% para apoiar programas de equidade social e empregos, outros 36% destinados às localidades que permitirem empresas de maconha para uso adulto em sua área, 25% para educação e programas voltados para orientação de uso indevido de substâncias e 3% para custos administrativos de implementação do sistema.
Pesquisadores da Ohio State University calculam que o estado pode conseguir até US$ 403,6 milhões em receitas fiscais anuais provenientes da venda de maconha para uso adulto.
“Os moradores de Ohio viram leis de legalização semelhantes serem adotadas em estados vizinhos e sabem que regular o mercado de cannabis é preferível à política fracassada de proibição. É imperativo que os governantes eleitos respeitem a decisão dos eleitores e implementem esta medida de uma forma que seja consistente com os sentimentos da maioria do eleitorado”, apontou o diretor adjunto da Organização Nacional para a Reforma das Leis da Maconha (NORML), Paul Armentano.
Federalização
Enquanto propostas legislativas para legalizar a maconha em nível federal não andam na Câmara, dominada pelo Partido Republicano, os estados vão criando suas próprias normas. Assim como aconteceu em Ohio, outros 13 estados também decidiram por meio de consulta nas urnas legalizar o uso recreativo, enquanto outros dez, que não abrem a possibilidade de serem votadas iniciativas peticionadas por parte da sociedade civil, aprovaram a legalização por atos do Executivo e Legislativo locais.
O movimento pela legalização tem crescido nas últimas décadas no país. Em 1996, a Califórnia se tornou o primeiro estado a legalizar a cannabis medicinal e, em 2012, Washington e Colorado se tornaram os pioneiros na aprovação do uso recreativo legal.
Segundo pesquisa do Instituto Gallup, nunca houve um apoio tão grande da população à causa. São 70% dos entrevistados afirmando que a maconha deveria ter seu uso legalizado, segundo levantamento divulgado nesta quarta-feira (8).
Para se ter uma ideia da evolução das pesquisas, em 1969, quando o Gallup fez o questionamento pela primeira vez, 12% apoiaram a legalização da maconha, apoio que ultrapassou 50% pela primeira vez em 2013. Trata-se de uma adesão que ultrapassa os limites das simpatias políticas, ainda que os percentuais variem entre si. A aprovação da legalização do uso da maconha alcança 91% entre os autodenominados liberais (que nos Estados Unidos tem uma conotação diferente da empregada no Brasil) e chega a 87% entre os democratas. Ainda que o índice seja mais baixo entre os conservadores (52%) e os republicanos (55%), nos dois grupos também constituem maioria.
“Numa altura em que muitas questões políticas permanecem fortemente polarizadas, a legalização da marijuana continua a ser uma das poucas reformas políticas com a qual a maioria dos eleitores da direita e da esquerda concordam. É quase uma negligência política por parte dos representantes eleitos, e especialmente dos legisladores republicanos, ficarem à margem num momento em que mais americanos do que nunca exigem ação”, pontua Armentano no site da Norml.
E o Brasil?
No Brasil, o julgamento da descriminalização do porte para consumo próprio no Supremo Tribunal Federal (STF) foi paralisado após pedido de vista do ministro André Mendonça. Além disso, o Projeto de Lei 399/2015, que visa a regulamentação medicinal e industrial da planta, ainda tramita no Senado. Mas é, sem dúvida, um estágio de discussão bem inferior ao que acontece no Norte do continente americano.
“Eu acho que estamos muito atrasados, mas em movimento. O movimento pela libertação da maconha cresceu no mundo todo nos últimos 20 anos. A partir de 2010, ele realmente se tornou uma avalanche que mudou o cenário completamente nos Estados Unidos, Canadá, Uruguai e em vários países da Europa. Então é um momento diferente, e o exemplo mais claro desse fracasso é justamente o da maconha”, avalia o neurocientista Sidarta Ribeiro, em entrevista à Agência Pública divulgada no início do mês.
Autor do livro As Flores do Bem, ele acredita que a legalização “não depende do governo, depende da sociedade civil”. “A pauta da cannabis avançou nos últimos sete anos, mas temos que lembrar que a pauta da legalização da maconha, para uso terapêutico, por exemplo, é muito importante, mas é uma pauta que só resolve a vida da classe média e branca. A pauta que realmente interessa é a de parar a guerra às drogas, que é a pauta da guerra às pessoas”, pondera.
“Se quisermos acabar com o narcotráfico, temos que compreender que este é hoje um grande negócio que se infiltrou totalmente no aparato estatal, é uma situação de polícias e militares infiltrados. Então tem que haver coragem, e essa coragem eu diria, está legalizar para poder acabar com o mercado ilegal, ou pelo menos reduzir bastante. E, por fim, ajudar as pessoas a não terem uso problemático com qualquer substância, podendo ser maconha, álcool ou até açúcar. Tudo isso precisa ser feito com muita moderação”, conclui.