Polêmica

Cotia: Um estudo sobre a negociação com Marinakis

Advogados fazem estudo completo sobre viabilidade da transação envolvendo a base do São Paulo e o investidor Evangelos Marinakis, da Grécia

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Meu nome é Luís Augusto Símon, mas pode chamar de Menon. Sou jornalista há 38 anos e antes eu sonhava em ser jornalista.
Cotia: Um estudo sobre a negociação com Marinakis
Centro de Formação de Atletas de Cotia. Reprodução

O texto abaixo, dos advogados Rodrigo Monteiro de Castro e Fernando Rosa  Rahal analisa a possível negociação entre o São Paulo e o grego Evangelos Marinakis, envolvendo do Centro de Formação de Atletas de Cotia 

SPFC e a eventual operação envolvendo Cotia: Uma análise de impactos financeiros e de governança

 

Breve introdução

Semanas atrás, a imprensa especializada noticiou e publicou os termos de uma eventual operação que o SPFC estaria entabulando com determinado investidor internacional (Evangelos Marinakis). Após alguma agitação, o tema deixou de repercutir. Olhando de fora, o silêncio talvez decorresse por um de dois motivos: a negociação, se efetivamente estivesse em curso, esfriou; ou passou a ser conduzida com maior rigor de sigilo.

Parece que se aplica a segunda hipótese, pois, em reunião extraordinária do conselho deliberativo do SPFC, ocorrida no dia 28 de janeiro, o tema da negociação teria sido abordado. Qualquer que seja o motivo, e mesmo que seja outro, não listado acima, este texto promove uma análise das supostas bases negociais, de modo a contribuir, construtivamente, para o debate a respeito do presente e do futuro do SPFC.

Parte-se, portanto, da premissa de que o SPFC estaria estudando alternativas de financiamento da atividade futebolística para, além de enfrentar as obrigações de curto e médio prazos, viabilizar uma estrutura que pudesse manter o time competindo, com sustentabilidade, em alto nível e no topo de tabelas.

A realização de eventuais movimentos talvez se justifique, ainda mais, em nossa opinião, pelo advento da lei 14.193/21 ("lei da SAF"), que resultou - e ainda resultará - no fortalecimento de clubes que, antes, tinham dificuldade de se equiparar ao orçamento e às perspectivas do SPFC.

2. O desafio

O ponto de partida da análise é o orçamento de 2025. O orçamento costuma expressar projeções de entradas e saídas, que podem ou não se confirmar em função de diversas variáveis futuras, e costuma ser construído com base em ocorrências passadas e eventos que, em princípio, deveriam (ou poderiam, com alguma segurança) se realizar.

Nesse cenário de projeções (e, necessariamente, de algumas incertezas), o orçamento projeta a contratação de mais de R$ 200 milhões em novas dívidas (ou empréstimos). Os recursos seriam utilizados, em conjunto com parte da geração de caixa de 2025 (proveniente de direitos de arena, patrocínio, negociação de jogadores etc.), para atender obrigações da ordem de R$ 350 milhões1, que vencem em 2025.

Contudo, o SPFC estruturou, recentemente, uma operação envolvendo um FIDC -  Fundo de Investimento em Direitos Creditórios, que restringe, como costuma acontecer em tais estruturações, a liberdade gerencial para realização de certos negócios, em especial para contrair dívidas. No caso, empréstimos superiores a R$ 10 milhões por trimestre devem ter anuência do comitê de crédito do FIDC2.

Assim, a negociação de parte do Centro de Formação de Atletas Presidente Laudo Natel, ou seja, a categoria de base conhecida como Cotia, poderia contribuir para o solucionamento de parcela da dívida que vencerá em 2025.

3. Sobre a operação

No âmbito da operação com Cotia, o SPFC receberia uma parcela imediata (aparentemente decorrente da venda de parte de Cotia), que seria destinada à amortização de dívidas, estimada em aproximadamente R$ 2403 milhões, montante que ainda seria insuficiente para cobrir os vencimentos previsto para 2025, da ordem, como visto, de R$ 350 milhões.

Para fechamento das contas de 2025, o SPFC dependeria da confirmação de um orçamento ambicioso, que prevê cerca de R$ 150 milhões em negociação de jogadores4.

Adicionalmente, como o valor recebido seria utilizado para amortizar apenas os vencimentos de 2025, o endividamento total do clube permaneceria em nível semelhante ao registrado ao final do exercício de 2023, refletindo uma situação financeira ainda crítica5.

A operação que circulou implicaria, ademais: (i) a manutenção pelo SPFC do controle das operações de Cotia, de modo que o investidor deteria uma participação minoritária em um veículo que fosse proprietário de empresa conjunta; (ii) uma transferência de recursos diretamente ao SPFC, parte destinada à amortização de dívidas (conforme antecipado acima) e parte destinada a investimentos incrementais no futebol, bem como investimentos diretos em Cotia; e (iii) um fluxo de caixa periódico oriundo de Cotia para financiar as atividades do futebol profissional (sob a forma expectativa de dividendos).

Em troca desse conjunto de coisas, o SPFC passaria a conviver com um sócio relevante e líquido, em uma estrutura que, por um lado, poderia ajudar a alavancar novos negócios, mas, de outro, obstaculizar outras operações mais audaciosas (ao menos com terceiros).

4. Pontos de atenção

De todo modo, alguns aspectos merecem destaque e, sobretudo, atenção, para que, ao invés de solução, a operação não se transforme em problema maior do que os desafios existentes:

Saída de capital para o investidor: Em outras estruturas de vendas de participações em empresas futebolísticas para investidores de longo prazo - cujo perfil parece ser o do investidor em Cotia -, como nos casos do Bahia com o Grupo City ou do Liverpool com a Fenway Sports Group, os resultados gerados pela operação são normalmente reinvestidos na própria atividade, com o propósito de promover um ciclo virtuoso de crescimento sustentável. Nesses modelos, o principal retorno financeiro do investidor costuma ser obtido no momento da venda futura do ativo pelo investidor (ou seja, da venda das ações de emissão da SAF ou da sociedade empresária constituída para organizar e operar o futebol), o que o incentiva a apostar no crescimento e valorização do time. Já no caso de eventual negócio envolvendo Cotia, o pagamento de dividendos periódicos ao SPFC e ao investidor, referentes às respectivas participações na sociedade - algo que somente poderá ocorrer, de acordo com a legislação societária, se a SAF ou a sociedade empresária, conforme o caso, apurar lucros -, restringiria a capacidade de reinvestimento na própria estrutura de Cotia, podendo comprometer seu desenvolvimento (e os próprios planos traçados pelas partes);
Conflitos de interesses: A operação poderia criar três conflitos principais entre o SPFC e o investidor, que merecerão um rigoroso e detalhado tratamento contratual: (i) primeiro, no aproveitamento de atletas: enquanto o SPFC deveria ter a tendência de se aproveitar esportivamente, ao menos por algum tempo (ou temporada), das revelações, o investidor, que não se beneficiará do aproveitamento clubístico, por não participar da operação do futebol profissional, tenderia a priorizar negociações rápidas para potencializar seu retorno financeiro; (ii) segundo, no âmbito do modelo atual, um atleta gerado em Cotia sobe automaticamente para o profissional, sem pagamento de contrapartida (além da própria formação), mas, no modelo em análise, parece não ter ficado claro se o SPFC, que deixaria de ser proprietário único de Cotia, teria que pagar para utilizar, sob qualquer forma (inclusive para celebração de contratos esportivos), algum atleta e, se o caso, em que bases (que podem ser beneficiadas ou privilegiadas em relação a terceiros ou nas bases de mercado); e (iii) por fim, considerando que o investidor é proprietário de outro time, poderia haver interesse na negociação prioritária de atletas formados em Cotia, em preferência ao SPFC, eventualmente a preços maiores do que o SPFC teria condição de arcar, porém, inferiores aos que outros times estariam dispostos a bancar;
Desembolso para a recompra: Caso o SPFC deseje, após a consumação da operação, retomar a propriedade integral de Cotia, precisaria, caso os contratos assim estabeleçam, recomprar as ações detidas pelo investidor, envolvendo um desembolso financeiro significativo. Embora a definição prévia de valores de recompra possa favorecer o comprador em caso de sucesso do negócio, ela também o prejudica em cenários adversos. Independentemente disso, o direito de recompra é essencial para proteger o futuro do SPFC e sua ausência poderia inviabilizar a retomada integral das categorias de base ou uma eventual operação mais audaciosa, envolvendo, ou não, uma SAF;
Opção de conversão para o investidor: Aparentemente, a operação contemplaria a concessão de uma opção ao investidor, para converter sua participação em Cotia em uma sociedade empresária futura do SPFC, seja ela SAF ou não. Esse tipo de instrumento - portanto, a opção de conversão - tende a diminuir (ou afastar) a atratividade para outros projetos que envolvam possíveis investidores de capital, podendo colocar o SPFC numa situação de refém do sócio minoritário de Cotia. Em contrapartida, a priorização do direito de recompra do SPFC sobre o direito de conversão do investidor poderia diminuir os efeitos da sua concessão;
Financiamento da operação após o período de aportes: Outro ponto crucial consiste na fixação dos meios de financiamento de Cotia após o término do período de aportes programados. Para garantir a manutenção do mesmo nível de investimentos no futuro, seria necessário reduzir a distribuição de dividendos, direcionando parte desses recursos para sustentar as operações e investimentos futuros. Além disso, caso a operação demande recursos que não possam ser supridos por financiamentos de terceiros (debêntures, notas comerciais, empréstimos etc.), os sócios, como regra geral, suprem com recursos próprios (ou mediante a obtenção de empréstimos pessoais) as necessidades da sociedade. Sócios que não conseguem acompanhar as demandas de capital costumam ser diluídos. Caso, portanto, a estrutura de Cotia eventualmente não seja autossuficiente, o SPFC poderia enfrentar um de três cenários: direcionar recursos do profissional para Cotia; obter outros empréstimos (desde que não esteja impossibilitado por instrumentos como os do FIDC); ou reduzir sua participação na sociedade.   
5. Conclusão

Caso a operação envolvendo Cotia se realize, com base nas premissas adotadas neste texto, ela não deverá solucionar, de modo estrutural e definitivo, os desafios financeiros do SPFC e pode trazer, a depender das condições negociadas, obstáculos operacionais e desafios ainda maiores para implementação de uma operação de grandes dimensões. Por outro lado, caso não se realize, o SPFC também terá, pela frente, um cenário bastante desafiador. Daí a inevitabilidade das seguintes indagações:

O que o SPFC fará para perpetuar sua relevância esportiva se não promover uma operação estrutural, como fizeram, aliás, quase todos os times relevantes do planeta, e, se a promover, quais seriam as condições ideais?
A operação apenas com Cotia seria o caminho adequado?
Quais seriam as alternativas viáveis à operação de Cotia para solucionamento dos desafios financeiros do clube, preservando sua sustentabilidade e gerando alinhamento de interesses de curto, médio e longo prazos?
Quem seria o parceiro (ou sócio) estratégico ideal para o SPFC6, considerando sua relevância histórica e importância nos cenários esportivos brasileiro e mundial, e levando em conta, além de Cotia, uma operação de grandes dimensões?
1 Montante composto de: parcelamento tributário; pagamento de atletas, clubes e intermediários; pagamento de acordos cíveis e trabalhistas; amortização de empréstimos; e amortização do FIDC.

2 Cf.: Disponível aqui; e aqui.

3 Correspondentes a 40% dos ingressos referentes à operação de Cotia.

4 Caso a operação se concretize, o SPFC deixará de receber a totalidade da receita com negociações de atletas formados em Cotia, de modo que, se a divisão de resultados se projetar sobre atletas contemplados no orçamento, a meta para 2025 poderá ficar mais desafiadora.

5 Nesse contexto, a operação envolvendo Cotia teria servido, em tese, como um mecanismo para cobrir os déficits recentes, notadamente de 2024, sem oferecer uma solução estrutural para os problemas financeiros do clube.

6 Que poderia ser o próprio investidor, em função de premissas que vierem a ser estabelecidas pela diretoria do SPFC.

 

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