OPINIÃO

Traduções capciosas: como a grande mídia demonizou Ahmadinejad

Para compreender como o sionismo instrumentalizou esse triste capítulo da história, recomendo a leitura do livro “A indústria do holocausto: reflexões sobre a exploração do sofrimento dos judeus”, de Norman Finkelstein

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Doutor em Geografia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professor da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). Especialista em Jornalismo pela Faculdade Iguaçu (FI). Autor de quinze livros, entre eles "A ideologia dos noticiários internacionais" (Editora CRV).
Traduções capciosas: como a grande mídia demonizou Ahmadinejad
O ex-presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad. ATTA KENARE / AFP

Há um famoso provérbio italiano que diz: traduttore, traditore. Isso não significa, necessariamente, que todo tradutor é um traidor linguístico. Quer dizer que toda a tradução não corresponde exatamente ao sentido original da frase. No entanto, há traduções que são capciosamente produzidas para distorcer determinadas falas. E estou me referindo, evidentemente, aos maiores manipuladores de informações em âmbito planetário: a chamada grande mídia ocidental.

Nas duas décadas passadas, os noticiários internacionais nos bombardearam com declarações polêmicas do ex-presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad, desde a negação do Holocausto nazista até a incitação ao genocídio contra judeus e megalomania religiosa. Consequentemente, nas personalizações dos noticiários, foi construído um espantalho midiático, a quem nós, “civilizados ocidentais”, deveríamos direcionar toda nossa repulsa.

Sinto dizer que as coisas não são bem assim. A partir de um sólido referencial teórico, a página História Islâmica, de Mansur Peixoto, explica como frequentemente os grandes órgãos de imprensa ocidentais traduziram entrevistas e discursos de Ahmadinejad como sendo pregações de ódio contra os judeus e ameaças violentas contra a existência de Israel e seus habitantes. Conforme Mansur, a (suposta) citação mais infame e polêmica do ex-presidente iraniano, alegadamente proferida em seu discurso na ONU em outubro de 2005 – “Israel deve ser varrido do mapa” – é a mais escandalosamente falsa.

De acordo com Juan Cole, professor de História da Universidade de Michigan e fluente em língua persa, Ahmadinejad nunca utilizou as expressões contra os judeus que a mídia hegemônica insiste em deturpar. Enquanto o então presidente do Irã dizia originalmente que “esse regime sionista desaparecerá das páginas do tempo”, a imprensa traduzia como “Israel será varrido do mapa”.

Como podemos perceber, há uma clara diferença semântica. A primeira tradução, mais fidedigna ao original, é uma sentença poética e alegórica – alinhada com a própria natureza da língua e do povo persas. Trata-se de uma frase semelhante a dita pelo aiatolá Khomeini, décadas antes, ao desejar que “este regime que ocupa Jerusalém desapareça das páginas do tempo”. No caso, em referência ao sionismo. Não corresponde, em hipótese alguma, a um comentário antissemita ou algo semelhante.

Por outro lado, a frase vendida nos noticiários da mídia ocidental – “Israel será varrida do mapa” – faz ressoar um cataclisma em que todos aqueles que vivem em Israel seriam obliterados e destruídos impiedosamente. Portanto, a partir de uma tradução mal-intencionada, Ahmadinejad foi transformado em um tirano sedento por sangue.

Do mesmo modo, um comentário de Ahmadinejad, em um encontro da Organização dos Países Islâmicos, em agosto de 2006, foi traduzido pela Rádio Free Europe como “cura principal para a crise no Oriente Médio seria a eliminação de Israel”. Sob o aspecto semântico, “eliminação de Israel” implica destruição física: bombas, ataques aéreos, terrorismo ou “atirar judeus ao mar”.

Porém, Ahmadinejad nunca disse tal coisa. Segundo a versão da mídia catari Al Jazeera, o que ele realmente afirmou foi que “a cura verdadeira para o conflito é a eliminação do regime sionista, mas primeiro deve haver um cessar-fogo imediato”. Uma simples denúncia do modelo racista, supremacista e segregacionista que está por trás do Estado de Israel.

Já a “negação do Holocausto”, feita pelo ex-presidente persa, propagada aos quatro cantos pelos maiores órgãos de imprensa ocidentais, também é falaciosa. Supostamente, ele teria dito: “Eles [sionistas] inventaram o mito do massacre dos judeus e colocam-no acima de Deus, religiões e profetas.”

Traduzindo corretamente, suas palavras foram: “Em nome do Holocausto, criaram um mito e consideram-no mais importante do que Deus, a religião e os profetas.” Assim, querem nos vender que Ahmadinejad negou o Holocausto, sobre o qual há farta e incontestável documentação e evidência, rotulando-o como “mito”. Na realidade, essa figura de linguagem refere-se ao mito construído em torno do Holocausto, não ao Holocausto em si – ou seja, “mito” no sentido de “místico”, enquanto mito fundador de algo, uma narrativa sacrossanta, inquestionável.

Para compreender como o sionismo instrumentalizou esse triste capítulo da história, recomendo a leitura do livro “A indústria do holocausto: reflexões sobre a exploração do sofrimento dos judeus”, de Norman Finkelstein.

Por fim, Mansur ressalta quais são as intenções de Mahmoud Ahmadinejad para a Palestina. O político iraniano gostaria de ver uma mudança de regime – mas por meio de um referendo sobre a forma de governo da Palestina geográfica, no qual todos os residentes originais, de qualquer religião, teriam direito ao voto. Obviamente, pedir um referendo sobre a dissolução de um governo não é pedir genocídio.

Ahmadinejad também afirmou não ter objeções a um Estado judeu em si. Apenas acredita que ele seria mais coerente e justo se estivesse localizado em um território alemão reservado para esse fim, ao invés de manter um regime de ocupação e colonialismo em uma terra alheia contra um povo autóctone.

E assim os discursos geopolíticos hegemônicos do Ocidente transformaram alguém que se engajou na luta anticolonial em um fervoroso antissemita. Não por acaso, nessa mesma linha de distorção, o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, disse ontem (22/5) que o grito “Palestina Livre” é a nova versão do “Heil Hitler”. Enfim, no chamado “mundo livre”, pelo menos nas redações das principais redes de televisão, jornalões e portais de internet, tradutores são, literalmente, traidores.

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