OPINIÃO

TJ-SP barra leis que transformavam guardas civis em polícia municipal – Por Álvaro Quintão

Decisão reforça os limites constitucionais e freia avanço da militarização nas cidades

Viatura da Guarda Civil Municipal de São Paulo.Créditos: Paulo Pinto/Agência Brasil
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O Tribunal de Justiça de São Paulo fez o que se esperava de um órgão judicial atento à Constituição: suspendeu leis municipais que tentavam transformar guardas civis em "polícia municipal". A decisão veio tarde, mas veio com firmeza. Foi um freio ao impulso de muitos prefeitos e câmaras que, sob a pressão da insegurança e da opinião pública, confundem atribuição com aparência, função com farda.

Guardas municipais não são polícia. Não foram pensadas como tal. Não nasceram para ocupar esse lugar. A Constituição de 1988, em seu artigo 144, foi clara: as guardas protegem os bens, serviços e instalações dos municípios. E essa missão, embora aparentemente modesta, é de enorme valor. Zelar por praças, escolas, hospitais, bibliotecas, centros culturais, abrigos, terminais urbanos, é proteger o cotidiano. É garantir que a cidade funcione, que o cidadão encontre ordem onde antes havia abandono.

Mas nas últimas décadas, impulsionadas pela falta de efetivo nas polícias estaduais e pela pressão social por mais "segurança", as guardas começaram a mudar. Assumiram atribuições que não lhes cabem, adotaram armamento mais pesado, carros blindados, uniformes pretos. Algumas passaram a se apresentar como "polícia municipal" em sites, viaturas, uniformes. O nome mudou, o comportamento também. Mas a lei, não. A lei seguiu lembrando que a função da guarda é civil, é preventiva, é comunitária.

Há quem defenda essa transformação como avanço. Dizem que a guarda mais armada, mais "rígida", impõe respeito, afasta o crime, preenche o vazio da ausência policial. Mas o que se vê nas ruas contradiz esse argumento. Guardas com armas longas, mal treinadas, confundem abordagens com confronto. Espalham medo onde deveriam inspirar confiança. Criam conflito onde deveria haver cuidado.

O Supremo Tribunal Federal reconheceu que as guardas podem atuar na segurança urbana, desde que respeitados os limites legais. Isso não quer dizer que se tornaram polícia. Quer dizer que podem colaborar com a prevenção da violência, com a proteção comunitária, com a promoção de um ambiente mais seguro nos territórios onde o Estado quase sempre é ausente. Mas colaborar não é substituir. Ampliar presença não é assumir função alheia.

O que o TJ-SP fez foi o mínimo: impedir que se burle a Constituição com o pretexto da eficiência. Impedir que se rebatize a guarda para dar a ela o peso simbólico e institucional de uma polícia, sem o controle, sem a formação, sem a estrutura, sem o dever correspondente.

Por trás desse debate está a militarização do cotidiano. Cada vez mais cidades querem guardas que se pareçam com soldados. Mas o que a cidade precisa é de gente que conheça os bairros, os rostos, os nomes. Que saiba onde a luz queimou, onde a escola foi pichada, onde o morador sente medo de passar. Gente que converse, que oriente, que previna.

Militarizar a guarda é escorregar para uma ideia de segurança baseada no confronto. É tratar a cidade como campo de guerra. Mas quem vive nas cidades sabe: o que falta não é mais armas, é mais escuta. Não é mais sirene, é mais presença. Não é mais repressão, é mais cuidado.

Não se trata de negar o valor da guarda. Ao contrário. É reconhecer que seu papel é indispensável, mas é outro. É um papel que exige escuta, vínculo, continuidade. Que exige olhar para a cidade não como uma selva a ser patrulhada, mas como espaço a ser habitado.

Transformar guardas em polícia é tentar resolver um problema com solução fácil e efeito reverso. O que precisamos é de um novo pacto sobre o que é segurança. E isso se constrói com políticas públicas, com investimento em educação, cultura, moradia, mobilidade. A guarda tem lugar nisso. Mas não como polícia. Como parceira da população. Como rosto humano do Estado.

A decisão do TJ-SP não fecha o debate. Mas oferece um rumo. Um lembrete de que, mesmo em tempos de medo, é preciso resistir à tentação do atalho. Que é possível proteger sem agredir. Que é possível cuidar sem reprimir. Que segurança, quando é de verdade, nasce do vínculo. Não da farda.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum

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