Nesta segunda-feira amanhecemos aliviados. O bloco das esquerdas da França, o Nova Frente Popular, formado em uma semana após o primeiro turno das eleições legislativas, venceu as eleições para o parlamento europeu, empurrando a extrema direita do primeiro para o terceiro lugar. A vitória de virada pode ser comparada a 1981, quando François Mitterrand venceu as eleições no segundo turno, alcançando 52% dos votos, dobrando seu percentual do primeiro turno e se tornando o presidente socialista da França.
O resultado chega em um momento crucial para o cinema francês. O CNC - Centro Nacional do Cinema - atravessa uma crise institucional sem precedentes. O seu então presidente, Dominique Boutonnat, pediu demissão às vésperas das eleições legislativas após ser condenado a três anos de prisão por agressão de conotação sexual denunciada pelo afilhado. Historicamente, na França, as instituições são sólidas o suficiente para não serem atravessadas por escândalos pessoais. Mas, esse “bastidor” sensível para o cinema seria um terreno fértil para a extrema direita agir com suas recorrentes ameaças de cortes e esvaziamento do estado pelas políticas liberais. A linha internacional do “Cinema do Mundo”, financiada pelo CNC, possivelmente seria o primeiro alvo da extrema direita.
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Eles perderam, ainda bem. E com eles derrotados, o seu discurso anti-arte e anti-imigração tende a voltar para o armário. O último domingo confirma a máxima histórica: no Dia D todos se unem contra o fascismo. A expressão “Dia D” surgiu na França, durante a Segunda Guerra Mundial, quando as forças aliadas desembarcaram nas praias da Normandia para impedir o avanço do exército nazista. A partir dali, os aliados chegaram a Paris banindo o nazi-facismo na Europa. Sabemos que Hitler, como grande estrategista em comunicação, sabia do poder do cinema para instrumentalizar sua ideologia da “raça-pura”.
Nessas eleições, Jordan Bardella, jovem branco de 28 anos, líder da ultradireita francesa, ambicionou o cargo de primeiro-ministro em uma campanha baseada no tik-tok. Errou feio. Não pelo uso da ferramenta audiovisual - que começa a ser regulada na França pelo seu potencial de espalhar fake news. Errou no conteúdo. Em uma França “métisse”, onde os casamentos inter-raciais são vistos como cool - o fascismo contemporâneo provou do próprio veneno. Bardella propôs como meta de campanha transformar os franceses binacionais em cidadãos de segunda classe, reduzindo direitos não só dos franco-brasileiros, mas também dos ítalo-franceses, entre outros. Acontece que esses novos franceses votam e foram em massa às urnas defender seus direitos, de seus filhos, de seus pais, de seus maridos, levando a França ao menor índice de abstenção dos últimos 43 anos, em um país onde o voto não é obrigatório.
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Atacar a binacionalidade foi um tiro no pé, semelhante a quando Éric Zemmour, outro líder em ascensão da ultradireita francesa e apresentador de TV, se lançou candidato à presidência da França em 2022. Durante uma ação de campanha em um colégio, se referiu a um estudante moreno, na faixa dos 12 anos, dizendo: “quando seu pai chegou na França…”. No que o garoto respondeu, “meu pai nasceu na França, senhor”. Então, “seu avô”, corrigiu o candidato. No que o garoto disse: “meu avô também nasceu na França, senhor, acredito que sou mais francês que você”.
Como diria Frantz Fanon, francês da Martinica, a back wash da colônia tomando o império veio mais rapidamente do que o esperado. Na Guiana Francesa, na Martinica e em Guadalupe, a esquerda elegeu seus deputados acima dos 50% de votos. Ou seja, se dependesse dos departamentos além-mar (eufemismo como são tratadas as colônias pelo establishment francês), especialmente das Américas, o campo da esquerda teria maioria absoluta no parlamento. Sim, temos muito o que comemorar, e somando ao resultado positivo da centro-esquerda na Inglaterra, arriscaria dizer que o jogo está virando e deve soprar bons ventos para as eleições presidenciais da França em abril de 2027.
Nós, do cinema, estamos em festa com mais uma derrota da extrema direita na França. A extrema direita mata, como sabemos, pessoas e as artes. E levamos tempo para apagar o seu rastro de destruição. Aqui, o bolsonarismo proibiu, por exemplo, ao Banco do Brasil de patrocinar filmes, entre outras medidas absurdas, que sufocaram os nossos cinemas nos últimos anos. Na Argentina, Javier Milei, o novo Trump dos trópicos, anunciou como primeira medida do seu governo um corte drástico no orçamento no INCAA - Instituto Nacional de Cine y Artes Audiovisuales Argentino - depois de já ter proposto o seu fechamento. Milei já voltou atrás, após pressão interna e internacional. Os últimos acontecimentos provaram, mais uma vez, que com o cinema não se brinca. Que sigamos insubmissas e insubmissos!