Na edição de Cannes deste ano, a cineasta francesa Justine Triet levou a Palma de Ouro. A imprensa já não repercutiu com a mesma euforia da vencedora do ano passado. Afinal, além dela ter feito um discurso contra a reforma da aposentadoria, mandando recado ao presidente Emmanuel Macron, o seu lugar de “mulher em Cannes” foi visto como notícia velha. Sim, os franceses vivem o mito da sociedade igualitária entre mulheres e homens, como aqui ainda tem quem defenda o mito da igualdade racial. Nas 76 edições do Festival de Cannes, apenas três mulheres ganharam o prêmio máximo. Essa triste matemática deveria sim ser notícia.
Por que os números da paridade de gênero no cinema não mudam? Às vezes, sofrem revezes e pioram, como aconteceu no Brasil de 2017 para 2018. E, quando avançamos, os passos são lentos a ponto de comprometer gerações. Vamos ao problema que nos une: tanto o Brasil, como a França, carregam números bem próximos. Os dados do Coletivo 50/50, que tem esse nome por exigir paridade nas equipes e ficou conhecido mundialmente por Agnès Varda usar seu broche em Cannes, apontam: entre as francesas, são apenas 27% dos filmes dirigidos por mulheres, a maioria de documentários e a minoria de animação. Os filmes de ficção ficam na média geral, feitos 26% por realizadoras.
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Como equiparar esses números? Políticas públicas robustas, que nos coloquem no jogo, ou seja, proporcionem a qualidade do filme, seu lançamento, distribuição, comercialização, prevendo todas as etapas da cadeia. Esse soft power não será o mercado que nos vai dar por benevolência, nem por reparação histórica. São as políticas públicas de direitos, com gestoras mulheres em espaços de decisão.
O sistema norte-americano sempre usou o soft power pelo cinema, disseminando, sobretudo na América Latina, a cultura da arma, com Rambo e 007, para ficar em alguns exemplos. Basta observar as duas últimas grandes estreias em Cannes: os filmes homenageados foram Top Gun Maverick (2022) e Indiana Jones, A Relíquia do Destino (2023). A ação fez parte do pré-lançamento e, como estamos cansadas de saber, o pop americano não poupa ninguém, nem os mais chiques dos franceses.
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E nós, o que precisamos fazer para usar o tal soft power e implantarmos sem mais delongas a paridade no cinema? Isso significa não ficarmos restritas aos curtas, aos documentários e aos filmes de baixo orçamento. Precisamos falar de orçamentos dos “grandes homens” para os filmes dirigidos por mulheres. A vencedora da Palma de Ouro dirigiu seu "Anatomy of a Fall", com 6,2 mil euros, algo em torno de 30 milhões de reais. Sabemos que os diretores brasileiros, que filmam no Brasil, também não têm acesso a orçamentos tão potentes. Mas, se os colegas estão fora desses números eurocêntricos ou Hollywoodianos, o que dizer dA cineasta brasileirA? Neste 19 de junho, Dia do Cinema Nacional, ainda precisamos falar sobre o lugar da mulher no cinema.
*Liliane Mutti é cineasta, conselheira da BRAVI (Brasil Audiovisual Independente) para coprodução Brasil e Europa. Presidente da Associação franco-brasileira Cine Nova Bossa, ela vive e trabalha entre o Brasil e a França. Mestre em estudos de gênero pela Universidade Paris 8, é diretora-roteirista dos filmes “Elle - Marielle Franco” (2021) e “Miúcha, a voz da Bossa Nova” (2022).