O Supremo Tribunal Federal (STF) formou maioria a favor da responsabilização das big techs Google e Meta por conteúdos ilegais. Os ministros Dias Toffoli, Luiz Fux, Luís Roberto Barroso, Flávio Dino, Cristiano Zanin e Gilmar Mendes se manifestaram a favor do entendimento. Contudo, as decisões apresentam divergências: ainda não há definição sobre o escopo das novas exigências nem sobre o modo de aplicação. Um dos principais desafios é apontar qual instituição assumirá a responsabilidade pela fiscalização e acompanhamento das plataformas.
Soma-se a isso o fato da regulamentação ainda enfrentar diversos entraves no Brasil, justamente por causa de lideranças políticas alinhadas à direita que se beneficiam da desinformação para ganho de apoio político nas redes sociais. Tanto que o PL 2630, das Fake News, não sai do papel.
O Jornal da Fórum desta quarta-feira (11) convidou o desembargador Alfredo Attié para comentar a decisão da Corte. Segundo ele, é importante que essas grandes corporações se submetam à ordem jurídica e se abram ao debate sobre regulação, embora sejam as maiores empresas de tecnologia do mundo.
O desembargador destaca que a luta contra a desregulação das big techs não é exclusiva do judiciário brasileiro, mas uma questão global. Ele citou a diretiva europeia como um exemplo importante, lamentando que uma lei semelhante tenha sido engavetada no parlamento brasileiro. E que regular não é apenas barrar conteúdos ilegais.
Exploração da força de trabalho
Segundo o desembargador, essas grandes corporações, que classifica como "oligarcas", dominam o capitalismo internacional, utilizando o trabalho dos usuários sem remuneração e buscando a desregulação da economia para que o capital circule livremente, sem prestação de contas à sociedade.
"As big techs hoje dominam o capitalismo internacional, quer dizer, elas estão aí em todas as áreas, com seus investimentos, elas querem desregular a economia, querem que não haja nenhum tipo de regra, elas acham que o capital, que elas mesmas obtêm, tem que circular da forma como elas desejam, sem qualquer tipo de satisfação às sociedades, não importa se geram pobreza, como em geral ocorre porque esse fluxo de capital não vem do céu, mas justamente da exploração humana, não é? Essas empresas precisam se sujeitar à ordem do direito, à ordem jurídica. Isso é uma questão de direito internacional importante", disse Attié.
O jurista defende que a responsabilidade é inerente a qualquer ação, e que as big techs, como qualquer entidade, devem se enquadrar na moldura da Constituição, das leis e dos tratados internacionais. A responsabilidade dos direitos humanos não se limita ao Estado, mas se estende a todos. "Eu também, como cidadão, sou obrigado a respeitar os direitos humanos, não é só uma obrigação do Estado. Então eu tenho que obedecer a essas normas."
Apesar de considerar a postura do STF importante, Attié alerta que a decisão não é suficiente. Ele defendeu a necessidade de uma pressão sobre o parlamento para que uma lei de regulamentação mais detalhada seja efetivamente votada, permitindo a participação de diversos setores da sociedade, como imprensa independente, grupos de proteção ao consumidor e ONGs.
"Elas [as big techs] sempre fogem de dar opinião publicamente, sempre fogem do debate. Elas querem impor uma ordem sem debater"
Formação do jurista no Brasil não contempla o cenário
O placar de votação ficou 6 a 1 no STF. Ao ser questionado sobre a posição do ministro André Mendonça que votou contra a responsabilização das plataformas, Attié atribuiu o fato à "deficiência" na formação do jurista brasileiro. Para ele, a educação jurídica no Brasil, desde o Império, tem sido marcada por um preconceito, ligada às oligarquias e afastada do projeto democrático. "No geral, o jurista brasileiro nas universidades, nos seus cursos de formação, ele aprende a não gostar do povo e aprende a ter pavor do poder do povo."
"Você vê, o Supremo Tribunal Federal que a gente tanto elogia, ele do ponto de vista do direito do trabalho, ele abriu as portas para exploração humana. Abriu as portas para a uberização, a questão da exploração das plataformas. Abriu as portas para terceirização, abriu as portas para prevalência da negociação contra a lei", exemplificou Attié, destacando como essa mentalidade contribui para o enfraquecimento da classe trabalhadora e o aumento da vulnerabilidade social. A pejotização, para ele, é um exemplo claro de como a pessoa é transformada em "objeto", perdendo sua condição humana em nome da flexibilização.
Ele argumenta nesse sentido que a ideia de democracia e cidadania está em jogo, e que a pessoa jurista deve compreender que suas ações afetam a sociedade. Attié também criticou a noção de corrupção que, em sua visão, vai além do mero suborno e se manifesta na capacidade das corporações tecnológicas de dar espaço para persuadir e valorizar ideias falsas, que no fim impulsionam atos corruptos.
"Você vê no âmbito, por exemplo, da questão das bets a quantidade de artistas que fazem propaganda dessas bets sem se preocupar com a responsabilidade, com os danos que isso pode ocorrer dentro de uma sociedade, a quantidade de clubes que aderem ao patrocínio dessas bets. E isso também acontece no âmbito das grandes corporações, que agem no ambiente da internet. Não apenas nos Estados Unidos, então as grandes estão sediadas ali, mas também no âmbito da China, no âmbito de outros países que têm também essas grandes corporações e vão se movimentando do jeito que querem"
Julgamento por tentativa de golpe e a extrema direita
Sobre o julgamento do ex-presidente Bolsonaro e seus aliados por tentativa de golpe que teve respaldo das plataformas, culminando nos atos antidemocráticos de 8 de janeiro, Attié esclareceu que não se trata de um crime político, mas sim de um crime contra a política, ou seja, um crime contra a ordem jurídico-política e o Estado Democrático de Direito. Ele destacou que a revogação da Lei de Segurança Nacional e sua substituição por uma lei que protege a ordem política brasileira é um avanço.
O desembargador observa que o cenário brasileiro foi marcado pela ascensão da extrema direita global com o apoio das big techs. "Você tem a instauração de regimes de extrema direita nos países centrais e eles exportam essa tecnologia, porque a ultradireita, o fascismo, na verdade é uma tecnologia. É uma técnica para destruir os laços sociais, é uma técnica para destruir os laços políticos, destruir a confiança que as pessoas têm na existência da política", explicou.
Em fevereiro, as big techs Meta (dona do WhatsApp, Facebook e Instagram), Google, Kwai, TikTok (rede social da chinesa ByteDance) e X (antigo Twitter) participaram de um seminário de comunicação do Partido Liberal em Brasília. Já em janeiro, as mesmas empresas não participaram de uma audiência pública da Advocacia-Geral da União (AGU), órgão ligado ao governo federal, para discutir desinformação nas plataformas digitais. Vale lembrar que em 2023 estas empresas ainda firmaram uma campanha contra o governo Lula por conta da pressão política pela aprovação do projeto de lei 2630/21, que buscava regulamentar as mídias sociais no Brasil.
Para Attié, o que está em jogo não é um embate entre o direito e a política, mas uma compreensão do direito que permita que a política democrática flua. Ele criticou a ideia de um papel "contramajoritário" do direito, argumentando que as decisões do STF, por exemplo, que reconhecem direitos de minorias, na verdade, dão voz ao que a própria Constituição e tratados internacionais preveem. "Não há um contramajoritário. Você, na verdade, está aderindo àquilo que a maioria decidiu no interior das Constituições".
Confira a entrevista completa no Jornal da Fórum