Este ano foi intenso para o cinema. Alguns dos maiores Festivais do mundo geraram filmes com potencial de obras-primas memoráveis, como o vencedor do leão de ouro em Veneza, “O quarto ao lado” de Pedro Almodóvar, e que já estreia dia 31 de outubro no circuito, ou alguns dos premiados da competição principal de Cannes que mereciam a palma de ouro para além do ganhador, mesmo cercados de polêmicas.
Alguns destes puderam ser conferidos no Festival do Rio, como, além do filme de Almodóvar, o prêmio especial do júri “The seed of the sacred fig” de Mohammad Rasoulof, cujo diretor chegou a ser preso no Irã por perseguição ideológica e seu longa-metragem teve de ser qualificado para o Oscar 2025 pela coprodutora Alemã, já que foi boicotado pelo governo do Irã. Outro foi o apoteótico “Emilia Pérez” de Jacques Audiard, com o prêmio do júri e melhor atriz e filme de abertura do Festival do Rio, o qual igualmente lotou todas as sessões extras (leia a crítica aqui). Sem falar em filmes que vão para a Mostra de SP, como a própria palma “Anora” de Sean Baker e o grande prêmio “Tudo que imaginamos como luz” da cineasta indiana Payal Kapadia. Mas também tivemos premiados que já estrearam nos cinemas, como o polarizado “A substância” de Coralie Fargeat (leia a crítica aqui) e o brasileiro que concorreu à palma “Motel Destino” de Karim Aïnouz (leia a crítica aqui).
No presente texto iremos focar em surpresas e decepções em geral, sem abordar os francos favoritos, como alguns dos descritos acima, nem a competição principal da Première Brasil, como os principais premiados “Malu” de Pedro Freire, o qual já estreia dia 31 de outubro e “Baby” de Marcelo Caetano que estreia em breve – que teremos a oportunidade de debater melhor com textos individuais em seus respectivos lançamentos.
Infelizmente, nem todos os premiados de Cannes pareceram tão felizes ou justos quanto os concorrentes à palma de ouro. Tomemos a láurea da palma queer, por exemplo, concedida a filmes de temática LGBTQIAPN+, e que poderia facilmente ter ido de forma merecedora para o supracitado “Emilia Pérez”, mas que foi para o controverso “Três quilômetros para o fim do mundo” do romeno Emanuel Parvu – uma das maiores decepções.
A história versa sobre uma família conservadora de ilha remota na órbita da Romênia (e, devido à essa distância, geográfica e cultural, que se dá o título do filme), quando a sexualidade de seu único filho começa a ser fofocada pela população local, com repressão que pode custar muito caro a todos. Com uma noção de enquadramento e espaço até interessantes, de modo a construir uma tensão principalmente com o que está fora do quadro (numa das principais formas de poder de sugestão com o uso do ponto cego nos cantos inferiores da câmera), só não alcança mais com esse recurso por escolher seguir a perspectiva de personagens demais, especialmente os opressores, e não o oprimido.
A grande questão com a escolha predominante de cenas e tempo de tela para todos os antagonistas, que se manifestam de várias formas contra a liberdade e autonomia individual daquele jovem, em sua própria autodescoberta identitária, vai se tornando tão sádica que o roteiro deixa de ter qualquer contraponto – e dramaturgia é feita de tensão, de conflito, o que torna a narrativa pobre e torturante apenas pelo sensacionalismo de torturar, com requintes de crueldade, como tentativas da famigerada e hipócrita “cura gay” e até uma espécie de “exorcismo” às avessas. São tantas humilhações que, mesmo quando o jovem recebe algum tipo de ajuda com lógica externa à ilha, não há mais qualquer escapatória possível para um mundo que existe na vida real, de fato, mas cuja mise-en-scène na ficção deveria ao menos oferecer mais chaves de debate do que apenas uma denúncia pura e simples que pode, mesmo sem querer, reiterar os preconceitos que tenta desconstruir.
Já o prêmio em Cannes de Caméra D’or (câmera de ouro), reconhecimento que Cannes concede para alguma contribuição especial, foi para o filme “Armand” do norueguês Halfdan Ullmann Tøndel, cuja decepção foi mais pontual, como se fosse um filme dividido em dois. Existe uma boa metade que dá liberdade total à protagonista interpretada por Renate Reinsve, com liberdade total de criação em cena, aparentemente ciente do status mundial que a atriz vem alcançando como uma das melhores desta geração atual, ainda mais depois de prêmios internacionais de melhor atriz como em Cannes 2021 pelo novo cult “A pior pessoa do mundo” de Joachim Trier. Por outro lado, existe a estrutura principal do longa-metragem, em torno da trama central, e que seria bastante interessante, num misto de “Deus da Carnificina” de Roman Polanski e “A Caça” de Thomas Vinterberg... Porém, o que se inicia na premissa dos filmes supracitados, com dois casais de pais discutindo por acusações feitas contra seus respectivos filhos na escola, e cuja mentira de um desses pode gerar danos irremediáveis, vai se perdendo no roteiro e, principalmente, nos diálogos, de modo a ficar repetindo frases e falas desnecessárias só pra tentar reter os segredos do filme – os quais, para qualquer boa cinefilia maturada, não são tão surpreendentes assim.
Já o outro lado da projeção, ou seja, todas as cenas envolvendo diretamente Renate, parece que foram construídas com apuro oposto, com silêncios muito bem aplicados e performances corporais magistrais, de modo a permitir que a atriz brilhe de forma memorável. Sua atuação com certeza será lembrada, já o filme não. O que decepciona é que tudo estava contido ali para uma grande obra, mas até as soluções cênicas, como a alegoria da chuva no final, são tão redundantes e óbvias que nem chegam a ser metáforas, só parecem bobas mesmo, apesar de haver trabalhos isolados de dança e corpo inesperados que agregam camadas intrigantes, mas que também não acabam bem integradas à trama principal, virando alegorias apenas da protagonista. Ou seja, mais uma vez, vale totalmente pela performance desta, entretanto, menos por todo o resto.
Agora discorrendo melhor sobre as maiores surpresas, a primeira com certeza foi o brasileiro “Continente” de Davi Pretto, ganhador de melhor direção na Mostra Novos Rumos do Festival do Rio, e que também estreia já no dia 31 de outubro. Uma das maiores predileções deste curador e crítico que vos escreve são filmes que ocultam o verdadeiro gênero do qual fazem parte, e, nesta obra reveladora, temos sim um clima de suspense e tensão desde o início, mas que só revela de fato o subgênero do terror ao qual se filia da metade da projeção em diante, de modos muito eficazes (tanto estética quanto dramaturgicamente). Vamos tentar manter o suspense aqui também, sem dar maiores spoilers, mas, por enquanto, vale dizer que há referências maravilhosas, desde à cineasta francesa Claire Denis ao cinema de horror brasileiro como de Zé do Caixão, que já prenunciava questões sociais como matéria-prima: “Conforme Gustavo Dahl: (...) Com suas componentes megalômanas e messiânicas, Zé do Caixão atende seguramente a um sentimento revanchista do lumpesinato contra a ordem estabelecida. É através da manipulação de poderes sobrenaturais que ele se opõe a valores estabelecidos. (FERREIRA, 2016, p. 87-88)[1].
Sobre a trama, basta saber o mínimo, pois acompanhamos dois pontos de vista principais: um guiado pela filha do latifundiário no sul do país, interpretada por Olívia Torres (de "Ainda estou aqui") que volta da França com o companheiro bilíngue antes que o pai doente venha a falecer; e a segunda perspectiva é de uma jovem médica, interpretada por Ana Flávia Cavalcanti (de "Rainha"), filha da governanta da Casa Grande. Ambas tentam superar traumas passados e entender melhor suas origens.
É a partir daí que vamos sendo envolvidos numa parábola shakespeariana à la "O Mercador de Veneza", onde a dívida cobrada na diferença de classes é de sangue, porém a conta da mais-valia nunca fecha a conta pro lado do proletariado. Antes mesmo de revelar o dispositivo de terror e sangue (por volta de 100 litros, segundo o diretor, em debate exclusivo, confira aqui), a trilha e o desenho de som fazem um excelente trabalho em dar camadas que disfarçam bem o gênero e vão crescendo o conflito até o ponto de consumação de desejo reparatório vir à flor da pele. O mais interessante é justamente isso, aqui, o horror advindo do corpo é também simbolicamente erótico, de formas inusitadas e criativas. Há uma entrega carnal que se transforma quase numa dança por parte do elenco, como nas sequências noturnas de percussão e espadas em rituais de matrizes afrodescendentes, e que, depois, irão se transformando em outras linguagens.
O desenvolvimento de personagem entre as duas protagonistas é inversamente proporcional, e suas raízes e ancestralidades vão emergindo de tal modo que os subgêneros do filme se dividem e se misturam, seja na parte do realismo fantástico da personagem de Torres, que altera fisicamente seu comportamento e estética, e o realismo maravilhoso da personagem de Ana Flávia, como curandeira, herdeira de bruxas e feiticeiras (como o mestre Lucio Fulci fundia em seus filmes). Mas é devida ovação para o elenco super bem azeitado, principalmente as mulheres, acrescentando-se Silvia Duarte e Hayline Vitoria, que ajudam a dar interseccionalidade às questões de classe, gênero e étnico-raciais. Sem falar no thriller final, que abraça de vez o desconforto assumido como imersão sensorial naquelas vivências, para que o espectador também sinta a justiça do trabalhador e da terra que sangra todos os dias por todos nós.
Por fim, mas não menos importante, preparem-se para "Black Dog" do diretor Guan Hu, pertencente à sexta geração de cineastas chineses, premiado como melhor filme da Mostra Um Certo Olhar em Cannes 2024. Mas não se deixem enganar pelo prêmio pomposo (e merecido, neste caso), pois a maioria dos premiados internacionais presentes na seleção do Festival do Rio deste ano foram um pouco decepcionantes, como retromencionado, vide as Palma Queer e Caméra D'or.
Na trama, há poucos meses das Olimpíadas de 2008 em Pequim, quando cidades são implodidas e redesignadas para alcançar as metas do Comitê Olímpico, é formada uma força-tarefa de captura do excedente de centenas de cachorros abandonados pela diáspora decorrente. O protagonista é um homem egresso da prisão, ex-roqueiro fã de Pink Floyd e ex-motociclista de acrobacias, que não concorda com como os cães estão sendo tratados nessa especulação social, e acaba adotando às avessas um destes capturados (o "black dog" do título).
E tudo começa com um dos melhores planos de abertura visto nos últimos tempos: Imaginem o quadro bem aberto para as montanhas áridas com um micro-ônibus a levantar poeira, vindo à distância na estrada, e um leve ajuste na câmera, depois, em panorâmica para a direita, quando uma matilha de cães gigantesca passa na tela (lembrando a cena final de "White Dog" de Kornél Mundruczó) e causa um acidente que faz o veículo virar!
A tessitura do filme é bastante silenciosa em geral e o protagonista interpretado por Eddie Peng (de "Operação Mekong") quase não tem falas, numa elegia ao cinema mudo, como Charles Chaplin em "Vida de Cachorro", exceto pelos assobios de comunicação (e que mudam, de acordo com as emoções dele). O desenho de som possui um esforço recompensador, inclusive, para dar vida aos mínimos gestos entre lacunas de diálogos, pois ter menos falas não quer dizer que inexista uma grande riqueza sonora para preencher as imagens de vastidão (os latidos, o motor da moto, a chuva de granizo, e o uso propositalmente anticlimático de Pink Floyd que nunca é entregue de forma fácil como os fãs poderiam querer, como o psicólogo fragilizado do protagonista).
Isso, agregado às homenagens ao faroeste com planos suntuosos do deserto montanhoso, com o pôr-do-sol à distância na cidade-fantasma de Shanxi, ainda temos a referência ao mestre Jia Zhangke, ícone dos cineastas da sexta geração, e natural desta província, o que lhe fez aceitar, aqui, interpretar um coadjuvante mafioso. Contudo, Jia está presente em mais do que isso: na própria estrutura, como nas demolições reais, ou no toque fantástico, como o eclipse e suas consequências oníricas em cena.
Há uma construção meticulosa de enquadramentos que muitas vezes parecem pinturas: quanto mais distantes e reflexivos ou introspectivos, mais ação na tela e menos closes nas personagens, o que é recompensado pela profundidade de campo poética pincelada sempre pelo sol e pela motivação do protagonista e seu cão preto. Não só planos belos, como alguns dos mais sensíveis e singelos, que tocam, mais uma vez, pela junção do silêncio com a plasticidade nos detalhes. Seja no coreto, no bungee-jump, ou seja nos precipícios e picos de onde podemos ver as matilhas ocuparem o horizonte, parece que a narrativa está sempre contida pelos arredores da cidade decadente, pelo abandono e pela invasão de investimentos industriais despersonalizantes, mas que há outra história a ser contada querendo transbordar pelas beiradas e fissuras, advindas dos animais.
Não só cachorros são coadjuvantes no elenco, como animais selvagens do zoológico e as serpentes criadas pelo antagonista da trama. Vale lembrar que nenhum deles foi ferido nas filmagens e que houve acompanhamento profissional para cada espécie, bem como o filme não possui qualquer cena explícita de maus tratos, podendo, porém, apenas aludir a uma ou outra aflição fora do quadro, que deixa alguns desconfortos intencionais em forma de denúncia da irracionalidade humana.
Antes do derradeiro frame minimalista que encerra o filme, uma das melhores seqüências finais retoma o plano inicial supracitado e traz uma profunda conexão com o horizonte e seus dois protagonistas chaplinianos à altura de quaisquer dos melhores faroestes da história. Só que, desta vez, "Black Dog" tem chance de ser anticolonialista e, ao invés de um homem e seu cavalo ocupando o "velho oeste", um cão passa a dizer muito mais sobre os seres humanos do que o inverso, e pode nos ensinar muito mais sobre nós mesmos e como viver em harmonia com a natureza, sem gerar conflitos ou destruir. Filme memorável e que merece ser visto na tela grande com qualidade de som!
[1] FERREIRA, Jairo. Cinema de invenção. Rio de Janeiro: Azougue editorial, 2016.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.