OPINIÃO

Haddad: apoios, críticas e soluções - Por Mauro Patrão

Por que o campo progressista, incluindo seus economistas, deveria apoiar a cruzada de Haddad para “equilibrar” as contas públicas através da tributação do ricos e dirigir suas críticas apenas ao arcabouço fiscal

Fernando Haddad, ministro da Fazenda.Créditos: Washington Costa/MF
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Num artigo recente [1], procurei argumentar que a visão macroeconômica do atual ministro da fazenda é basicamente a mesma a mesma da atual secretária do tesouro dos EUA, que foi também a primeira mulher a presidir o poderoso Federal Reserve, o Banco Central dos EUA. Também procurei descrever resumidamente como funcionam as políticas fiscal e monetária nessa visão macroeconômica moderna, ressaltando que, apesar de nunca “faltar dinheiro” para o gasto público, não deriva daí que não se deva geralmente dar atenção ao deficit/superavit primário, pois as políticas fiscal e monetária são como “dois braços do mesmo organismo”, analogia que o próprio ministro da fazenda costuma mencionar.

Neste artigo, pretendo explicar melhor porque o campo progressista, incluindo seus economistas, deveria apoiar a cruzada de Haddad para “equilibrar” as contas públicas através da tributação do ricos e dirigir suas críticas apenas ao arcabouço fiscal, buscando o aperfeiçoamento da atual lei complementar que o institui.

Apoios

A estratégia de Haddad foi a de propor um controle do crescimento dos gastos que, ainda que consideravelmente mais suave do que o famigerado “teto de gastos” de Temer, necessariamente gera superavits primários, desde que a regra seja mantida por um tempo suficiente. Por outro lado, Haddad também propôs buscar o deficit zero já no ano de 2024, o que só é possível ser alcançado se as receitas forem aumentadas, uma vez que a proposta de lei orçamentária enviada pelo governo e aprovada pelo congresso prevê um gasto público no teto do limite de gastos.

Essa estratégia permite que Haddad fique na posição de defensor do deficit zero a ser obtido não com o corte de gastos sociais, mas com o corte dos chamados gastos tributários, que aumentaram de 2% do PIB em 2016 para 6% do PIB em 2023, segundo declarações do próprio ministro [2]. Se os gastos tributários retornassem ao patamar anterior a 2016, teríamos um aumento de receitas de 4% do PIB, cerca de R$ 400 bilhões em valores atuais. As medidas já anunciadas por Haddad diminuem apenas parcialmente os atuais gastos tributários, pois ele defende explicitamente que esse processo seja feito paulatinamente, de forma a diluir seus impactos ao longo tempo.

Caso o legislativo e em alguma medida o judiciário não garantam essas medidas propostas por Haddad para a recomposição parcial das receitas perdidas nos últimos anos, são esses dois poderes que irão arcar com o ônus de não dar importância ao deficit. Além disso, o ajuste fiscal proposto por Haddad, via diminuição dos gastos tributários, além de progressivo do ponto de vista distributivo, ajuda a pressionar o Banco Central do Brasil a manter as quedas da taxa de juros num ritmo de pelo menos 0,5% a cada reunião do COPOM e a atingir um patamar menor do que aconteceria sem esse aumento das receitas. Por isso tudo, não faz sentido do ponto de vista progressista focar as críticas no deficit zero. O campo progressista deveria fazer coro e apoiar Haddad nessa causa justa.

Críticas

Por outro lado, o atual arcabouço fiscal apresenta problemas estruturais e sua lei complementar terá necessariamente que ser aperfeiçoada no longo prazo e, como vou argumentar a seguir, deveria ser aperfeiçoada no curto ou médio prazos. E quais são esses problemas estruturais? Primeiro, se o crescimento real das receitas ficar entre 1% e 3,5% ao ano, o arcabouço fiscal limita o crescimento real do gasto público a ficar entre 0,7% e 2,5% ao ano, pois a taxa de crescimento real do gasto público está limitada a 70% da taxa de crescimento real das receitas. Isso implica que o gasto público como proporção das receitas decresceria indefinidamente, enquanto os superavits primários cresceriam indefinidamente. Isso por si só já mostra que o arcabouço terá que ser ajustado no longo prazo.

Mas existe um outro problema estrutural mais urgente, pois, com o fim do “teto de gastos” de Temer, os mínimos constitucionais de saúde e educação (também chamados de pisos de saúde e educação), que estavam suspensos, voltaram a valer. Como a taxa de crescimento real desses mínimos é igual a 100% da taxa de crescimento real das receitas, em algum momento, os pisos de saúde e educação passariam a ser maiores do que o teto de gastos globais do executivo requerido pelo atual arcabouço fiscal. Mas é importante observar que, desde agora, esses pisos de saúde e educação (e também os gastos previdenciários) pressionam a taxa de crescimento real dos demais gastos do executivo, que já neste primeiro ano será de apenas 30% da taxa de crescimento real das receitas, caindo progressivamente. Com o passar do tempo essa taxa se tornaria negativa, quando então os demais gastos do executivo (meio ambiente, cultura, infraestrutura etc.) começariam a diminuir em termos reais até eventualmente desaparecerem.

Enquanto o primeiro problema estrutural só pode ser modificado com o ajuste do atual arcabouço fiscal, o segundo problema estrutural poderia, em princípio, ser resolvido de outra maneira, modificando-se os pisos de saúde e edução na Constituição. Essa parece ser a intenção do governo ou, pelo menos, de parte dele, dadas as diversas declarações de membros do segundo escalão da equipe econômica [3], [4], [5]. É exatamente neste ponto que as críticas do campo progressista, especialmente seus economistas, deveriam estar focadas. Primeiro porque a oposição aos mínimos constitucionais de saúde e educação sempre foi bandeira do campo conservador. Segundo porque o piso da saúde foi conquistado apenas em 2016 e após muita mobilização e luta do campo progressista, enquanto o piso da educação está presente nas constituições brasileiras desde a Constituição de 1934, só tendo sido abandonado durante os períodos da ditadura Vargas e da ditadura Militar. Terceiro porque é mais fácil em termos de quórum qualificado modificar uma lei complementar do que a Constituição, aliás essa foi uma das principais conquistas do atual arcabouço em relação ao famigerado “teto de gastos” de Temer. Quarto porque existe um amplo apoio na sociedade e em boa parte do parlamento para manter os pisos de saúde e educação.

Soluções

Uma solução mais adequada para resolver esse segundo problema estrutural e que deveria ser apresentada pelo governo e apoiada pelo campo progressista é modificar a lei complementar do arcabouço. Por exemplo, aprovando a emenda proposta pela professora Dorinha [6], senadora do União Brasil de Tocantins, que exclui os mínimos de saúde e educação do teto do arcabouço fiscal. Além disso, como disse Haddad em entrevista desta semana [2], o controle de gastos com a folha de pagamento do serviço público deveria começar pelos andares de cima, que estão fora das áreas de saúde e educação e se concentram principalmente no legislativo e no judiciário, este último gastando no Brasil cerca de quatro vezes a média da OCDE como proporção do PIB [7].

O ideal é que os gastos do legislativo e do judiciário crescessem apenas pela inflação até que essas distorções internacionais se reduzissem consideravelmente. Após a redução dessas distorções internacionais, esses gastos passariam crescer com a mesma taxa de crescimento das receitas. Mas como muitas vezes o ideal é inimigo do ótimo e mais ainda do bom, uma solução politicamente mais viável é que o reajuste dos gastos do legislativo e do judiciário cresçam, por exemplo, a 30% da taxa de crescimento das receitas enquanto não se reduzissem consideravelmente essas distorções.

No artigo [8], junto com coautores, defendemos os seguintes princípios para um regime fiscal sustentável: 1) Garantir os direitos constitucionais, 2) Combinar baixa inflação com baixo desemprego, 3) Planejar e executar com previsibilidade o orçamento público, 4) Garantir a coerência e a transparência das regras fiscais.

Em 2022, com os mesmos coautores, elaboramos uma proposta que, além de ser compatível com os pisos de saúde e educação, indexava a taxa de crescimento real do gasto público à média da taxa de crescimento real do PIB dos últimos 4 anos (que é muito mais estável e anticíclica que a taxa de crescimento real das receitas). Além disso, permitia que os gastos com transferência de renda e com investimentos pudessem ser usados como mecanismos anticíclicos quando fossem necessários. Essa proposta foi apresentada para a equipe econômica da campanha do Lula durante o segundo turno e debatida com a economista Mônica de Bolle [9] no final de 2022, mas foi considerada por alguns como sendo pouco ambiciosa. A história mostrou com quem estava a razão. O campo progressista, especialmente economistas, deveria cobrar e apoiar todas as medidas na direção dos princípios acima.

Brasília, dia 24 de Janeiro de 2024

Notas

[1] Patrão, M.: Haddad, o equilibrista

[2] Roda Viva | Fernando Haddad | 22/01/2024

[3] Governo enviará PEC no 2º semestre para mudar piso de gastos em saúde e educação, diz secretário do Tesouro | 11/04/2023

[4] Governo vai discutir correção de pisos para gastos com saúde e educação, diz secretário do Tesouro à CNN | 19/06/2023:

[5] Governo trabalha em novas regras para piso de saúde e educação em 2025, diz secretário de Orçamento | 03/12/2023

[6] Nova regra fiscal: Senadores querem preservar gastos com educação e saúde | 05/06/2023

[7] Gasto com Judiciário chega a 2% do PIB, quatro vezes a média da OCDE | 02/12/2018

[8] Patrão, M. et al.: Os 4 princípios para um regime fiscal sustentável

[9] Para além do Teto: apresentação e debate de propostas de um Regime Fiscal Sustentável | 08/12/2022

*Mauro Patrão é doutor em Economia e em Matemática e Professor Associado da UnB.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.