Zygmunt Bauman talvez jamais tenha imaginado em vida o quanto seu conceito de “modernidade líquida” poderia ser usado para explicar tantas distorções da realidade como vemos hoje em dia: viralizações, fakenews, correntes de zap, avatares virtuais e tantas coisas mais que diluem a identidade social em uma grande geléia amarga. Vivemos uma era de tretas online, onde nada é seguro e qualquer um pode ser sabotado ou se sabotar a qualquer momento com repercussões na vida real. Pois duas séries dialogam com os anseios mais obscuros desta ramificação tóxica da sociedade, como algo parecido com uma grande colmeia de abelhas desbaratadas, apertando os cintos porque a abelha-rainha sumiu.
Vamos começar por “Treta” (“Beef”, no original), série criada pelo sul-coreano Lee Sung Jin em coprodução inédita entre a gigante Netflix e a maior produtora independente multipremiada A24. Em módicos 10 episódios com duração em torno de 30 a 40 minutos, esta obra é construída de forma bem fechadinha como se fosse minissérie (apesar de recentemente o seu criador ter anunciado planejar mais duas temporadas extras), e é impossível não ser tragado para a espiral de eventos estapafúrdios que uma briga de trânsito pode disparar. Qualquer pessoa que já tenha dirigido algum veículo numa cidade grande sabe muito bem que pessoas dentro de um carro, ainda mais num dia potencialmente ruim, podem se transformar numa arma letal em movimento. Da falta de educação à pura agressividade, basta um gatilho a mais para gerar um acidente que poderia ter sido evitado.
Numa sequência inicial frenética à la “Relatos Selvagens”, os dois protagonistas duelam buzinas em pleno estacionamento do supermercado, levando a uma inusitada perseguição que vem a ser interrompida antes de um desfecho potencialmente trágico. Basta esse gatilho, inspirado em fatos verídicos que o criador da série passou na vida real, para fazer com que as personagens da ficção elevem isso a outro nível, anotando suas respectivas placas e perseguindo uma à outra na vida privada. – Cada episódio ultrapassa ainda mais os limites, esgarçando a realidade. As personagens principais são interpretadas com afinco a nível escalafobético pela comediante, ora revelação dramática, Ali Wong (do show de comédia em pé “Baby Cobra”) e pelo indicado ao Oscar Steven Yeun (de “Minari” e “The Walking Dead”).
As tretas começam de forma quase infantil e descontraída, mas vão escalonando vertiginosamente, desde difamação nas redes sociais à falsidade ideológica para se ludibriarem reciprocamente. Além disso, há ótimos ganchos ao final de cada etapa para se continuar grudado na telinha. Ainda mais com uma trilha sonora irônica cheia de pop rock indie, de “Lonely Day” do System of a Down a “The Reason” do Hoobastank, como se a dupla de protagonistas fosse composta por adultos que ainda não amadureceram afora das expectativas frustradas de músicas rebeldes da adolescência. A família é a instituição social basilar que desmorona na base da pirâmide de formação desses indivíduos, colocando na fogueira da vaidade seus entes mais queridos em apostas temerárias, não esquecendo de todo um subtexto incluído nesta camada, e que desmistifica o preconceito e xenofobia contra imigrantes orientais nos EUA (num tom que o ganhador do Oscar este ano, “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo” também teclava).
Não que falte a leveza do humor nesta empreitada, pois sobram tiradas ácidas e politicamente incorretas, mas, o que realmente surpreende, decerto, é a curva dramática fora do padrão que ambos passam a experimentar – especialmente do papel feminino, escrito de forma ímpar. É dela que advêm algumas das melhores possibilidades de quebra de parâmetros e reviravoltas, uma vez que não é comum vermos ao vivo e a cores na ficção hegemônica, de forma tão meticulosa, o colapso nervoso da desconstrução do sonho americano – vide o close direto no rosto da protagonista numa sessão de terapia que consegue matizar entre a dissimulação, a negação e a vulnerabilidade, até chegar numa implosão total.
Aqui, isso acontece através de Amy Lau (Ali Wong), uma bem-sucedida descendente de imigrantes chineses, casada com o filho de um famoso artista plástico japonês, e cujo sucesso todo não consegue abrandar o extremo vazio que sente por dentro. Esta lacuna existencial irá ser preenchida quando encontrar alguém padecido com a mesma enfermidade que ela, fazendo começar um processo simbiótico de transferência de problemas de um para o outro.
Steven Yeun também brilha como Danny Cho, um profissional que se sente um fracasso na vida em tudo o que faz, sentindo-se culpado pela perda do hotel que sua família coreana administrava, tudo por causa de um incidente ilegal com o seu primo golpista. Entretanto, talvez por já termos visto esse arquétipo colapsar antes, de várias formas, como em cults do naipe de “Um Dia de Cão” e “Um Dia de Fúria” (mesmo sem esquecer a imigração e a ascendência estrangeira como diferenciais), é notável o quanto o ator se esforça para não deixar a peteca cair só porque Ali Wong possui o maior diferencial no roteiro.
Justamente pela disparidade de classes, a princípio, quem teria muito mais a perder é ela, evidentemente. Porém, seria negligência não pensar que o sonho norte-americano possa ser falso e doentio para todo mundo, de qualquer origem. É neste ponto em comum que ambos mais entregam performances inovadoras (especialmente quando a câmera capta as microexpressões com que eles desmoronam).
A série também é muito bem dirigida, com citações a famosos quadros no início de cada capítulo que servem como temas bem compactados no próprio episódio, esmiuçando os criativos títulos, geralmente ligados a uma metamorfose selvagem de animais, como “Os pássaros não cantam, eles gritam de dor” e “Criaturas tão intimamente secretas”. Sem falar na arte diegética que é usada narrativamente, como as belas plantas da empresa botânica da personagem (que podem curar ou envenenar); os horrendos vasos de artes plásticas do marido japonês de Amy e as milionárias cadeiras do famoso pai dele (que podem ser objeto de barganha e disputa); ou mesmo as coroas ancestrais da coleção colonizatória da rica personagem coadjuvante Jordan (Maria Belo), que literalmente coroam a mise-en-scène final de muitas formas.
Mesmo se comunicando com um público mais amplo, e com um desenrolar mais acessível para as massas, a tênue combinação entre humor ácido, drama e ação não deixa de vir formatada em autoralidade por parte de seu criador, que imprime um visual inventivo e que permite seu elenco a ocupar espaços mais interessantes do que os típicos enquadramentos conservadores de produções da Netflix. Há cenas desafiadoras que fogem à expectativa, como a inusitada bulinação com uma arma; ou quando um personagem ‘marca território’ na casa do outro feito cachorro; e até uma sequência lisérgica com alucinações recíprocas sem precisar de efeitos especiais, só com o bom aproveitamento de quadro, lente e crossfade na montagem.
Talvez isso já seja parte da exigência de uma curadoria mais apurada por parte da A24, que, devemos acreditar, não deixaria o financiamento de uma gigante dos streamings atropelar sua autonomia e liberdade artística. Podemos notar várias similaridades com as esquisitices e disrupções desconfortáveis que suas obras geralmente evocam, como nos filmes de Robert Eggers, Ari Aster e Janicza Bravo. A A24 não se pretende entretenimento escapista, muito pelo contrário, deseja incomodar com pegada brechtiana. E “Treta” com certeza permanece incomodando mesmo após se finalizar o último capítulo, com boas reflexões e identificações excêntricas na cabeça.
Outra série com potencial disruptivo é “Enxame” (“Swarm”, no original), criada pela dupla Janine Nabers e Donald Glover (ambos do seriado de sucesso “Atlanta”) e lançada recentemente na Amazon Prime Video, colocando na berlinda referências do universo pop como uma polêmica analogia ficcional à cantora Beyoncé e seu fã-clube nas redes denominado de “Beyhive” (parafraseando a palavra colmeia em inglês, e de onde advém o título “Enxame”).
Igualmente desafiadora, e também inspirada em alguns fatos reais que vão sendo intencionalmente distorcidos, os roteiristas desta minissérie usam o delírio como potencial catalisador. Aqui a violência pode não necessariamente acessar o mesmo público amplo do exemplo supracitado, mas levará a metáforas e análises sociais ainda mais pungentes. Se dissermos simplesmente que a premissa é guiada pelo ponto de vista de uma fã que enlouquece por sua ídola, em meio ao culto quase religioso que a internet proporciona à distância, e que passa a matar detratores e haters que não concordem com ela, estaríamos sendo levianos e injustos.
Em primeiríssimo lugar, surpreendentemente, porque o protagonismo da trama não é do típico personagem esperado neste papel, ou seja, um jovem branco, nerd e incel que dissemina pensamentos de ódio e jamais se responsabiliza por seus próprios atos, e sim por uma jovem mulher negra. Em segundo lugar, porque a chave do absurdo narrativo escalona ao surreal, permitindo que algumas licenças poéticas se tornem quase críveis dentro deste universo meticulosamente construído, a ponto de incluir um pseudodocumentário entre os episódios para fingir que existe uma policial de verdade perseguindo (e humanizando) a assassina que teria ‘inspirado’ a série.
Quando nos perguntamos no audiovisual quantos filmes de serial killer já vimos sendo interpretados por mulheres não quer dizer que estamos ensejando ou estimulando que mulheres matem – senão, o contrário também seria verdade, e as incontáveis obras com homens brancos como serial killers deveriam ser responsabilizadas. Estamos falando sobre ocupar todos os espaços dramatúrgicos em potencial, criar novas narrativas e, sim, uma serial killer negra tem muito a acrescentar metaforicamente sobre a sociedade em que vivemos. Por que ela sentiria esta necessidade? Quais mazelas lhe teriam sido infligidas para romper esse precioso pacto social de não agressão? Quanta violência já foi imposta a esta parcela da população, inclusive legitimada injustamente pelo estado e pela polícia, para que mulheres negras simplesmente começassem a aplicar seu direito de legítima defesa? Ou mesmo de atacar primeiro e responder depois (como a muitos homens brancos se é apregoado até hoje)?
Eis a analogia que esta série vem trazer de forma inovadora e intensa, com episódios que vão crescendo exponencialmente, bem como o perigo que denunciam na sociedade de mazelas e negligências impossíveis de se negar no sistema falho que vivemos hoje. Um abandono que não justifica a violência, mas explica muita coisa, e que poderia ser evitado com mais respeito e cuidado garantidos por lei a pessoas em situação de vulnerabilidade. Crianças que crescem sob mazelas de um orfanato, por exemplo, ou em reformatórios, quiçá presas ainda menores de idade. Como ficaria a cabeça das gerações futuras se passassem pela mesma coisa?
Eis de onde surge a interessante premissa sobre uma jovem fã (no sentido quase literal da palavra ‘fanática’), devota da maior artista de sua geração, numa analogia velada à cantora Beyoncé – e que fala sobre essa sociedade de avatares que são uma pessoa online e outra na vida real, estimulando que verdadeiros monstros sejam liberados neste abandono e dissociação identitária. De uma vida pacata e submissa, a jovem protagonista vai se tornando uma serial killer, a partir de uma construção de personagem muito bem ajambrada pela atriz Dominique Fishback, com nuances que vão desde a pureza infantil de seus grandes olhos e bochechas sardentas aos silêncios de seus punhos que atacam sem aviso prévio.
Mas cuidado ao acreditar na veracidade dos fatos conforme sarcasticamente afirmado na primeira cartela do episódio piloto, pois apesar de extrair muitas influências da vida real, na verdade, a forma de juntar tudo e sintetizar numa única personagem foi bem mais cronometrado pela ficção do que o contrário. De fato, houve rumores sobre uma fã que teria tirado a própria vida quando veio ao público informação sobre a intimidade da cantora Beyoncé... Só que rumores, lendas urbanas, fatos verídicos e pura fabulação foram misturados na panela pra gerar esta excelente receita. E o melhor de tudo é poder acreditar em cada episódio de absurdos non sense graças ao talento com que os criadores escreveram cada bloco temático separado, pois a loucura é apresentada aos poucos, jamais no olho de somente um furacão.
Cada episódio possui tema e identidade visual próprio, mesmo que não excludente ao anterior, mas de forma complementar a incrementar o quadro geral, pois são muitas as identidades assumidas pela camaleônica Dominique Fishback. Alguns destes capítulos são verdadeiras obras-primas, vide aquele com o culto de mulheres na floresta à la bacantes, no qual a estreia como atriz da cantora Billie Eilish rende uma das melhores seqüências do ano: A protagonista (Fishback) está sendo hipnotizada pela líder da seita (Eilish), num ritmo do estalar de dedos, de modo que conte toda a verdade sobre quem é. A entonação aveludada da cantora foi escolhida como uma boa luva para interpretar alguém capaz de fazer uma lavagem cerebral, só com o uso da voz, quase parecendo uma sessão de ASMR. Outros episódios notáveis são o supracitado pseudodocumentário que introduz outros artistas interpretando as personagens da série como se assumisse que o elenco estivesse encarnando pessoas reais; além do season finale com uma solução lisérgica que ainda desenvolve de maneira impecável um personagem homem trans a esta altura do final da trama.
Só o fato de cada capítulo apontar para um lado totalmente diferente, sem lhe dar chance de prever exatamente como será o próximo passo, desde a introdução da personagem, quando ela ainda é extremamente passiva e sugestionável, ao lado da irmã interpretada pela ídola teen Chloe Bailey, até as reviravoltas que a levam a virar dançarina num clube de strip-tease, ou mesmo depois virar roadie no show do marido da cantora que tanto ama e almeja conhecer. Cada um destes temas é nomeado com títulos que aludem à abelhas, como “Ferroada”, “Mel” e “Sabor”, ao mesmo tempo em que vão fazendo com que ela experimente o gostinho de revidar contra peças do sistema que ela enxerga como opressoras.
Nada é simples nesta empreitada que vale muito à pena se jogar de cabeça, de forma completamente sensorial, e se permitir criar identificação com esta personagem tão quebrada e partida quanto humana, numa revelação total por parte de Dominique Fishback. Ela jamais solta a mão do espectador, mesmo quando ela própria não quer cometer uma barbaridade impensada e chora por saber que não pode se conter, como se chorasse para nós mesmos por empatia. Pela nossa própria dor e por atos impensados que todo mundo comete no dia a dia, mesmo aqueles cheios de privilégios ou os que não possuem nenhum, e que podem se aliviar no poder desta ficção para não repetir os mesmos erros que nossa trágica e agridoce protagonista.
Dominique e Ali Wong merecem todos os prêmios desta temporada. Assim como os respectivos criadores e criadora destas pérolas no streaming.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.