A liberdade é um conceito fundamental na ciência política, sempre existiram várias definições e, por isso, é tão confusa e complexa. Para os capitalistas, a liberdade do mercado, aquela que faz o dinheiro circular entre um empreendimento e outro, se mistura à liberdade individual, aquela que permite ao indivíduo escolher seu trabalho.
Para um socialista, a liberdade de escolha do trabalho só pode ser possível se o indivíduo tem garantias fundamentais de vida, como moradia, comida, acesso à saúde etc. Pois, quem passa fome não tem liberdade para escolher seu trabalho.
A economia-política são essas estruturas ideológicas e suas experiências construídas na realidade, tentativas de organizar a sociedade para produzir e distribuir a produção. O grande desafio sempre foi encaixar a ideia de liberdade na vida da população.
A sensação de liberdade pode nos prender a uma vida de exploração. Um exemplo clássico é o motorista da Uber que acha que é empreendedor ou trabalhador autônomo e trabalha para si mesmo.
Liberdade é tão fundamental que até nos discursos mais extremistas e radicais esse conceito precisa ser trabalhado e, normalmente, é visto como um fim a ser alcançado. No entendimento da extrema direita brasileira, o fantasma do comunismo ataca diretamente sua família, seus costumes e sua liberdade. Mesmo não sabendo exatamente o que significa, existe uma ideia geral: a do Estado opressor.
Muita gritaria se ouviu nos últimos anos sobre um fantasma do comunismo e seu Estado opressor. Um Estado tão inchado e controlador que tiraria as liberdades individuais, amarraria a mão invisível do mercado e impossibilitaria uma economia saudável e próspera. E essa gritaria ecoava por todo o Brasil dois nomes como garantia de crescimento econômico e liberdade. Bom, economia próspera e saudável foi exatamente o que não aconteceu durante o governo Bolsonaro com seu posto Ipiranga Paulo Guedes, ex-ministro da Economia.
O governo Bolsonaro cometeu muitos crimes, muitos deles para enriquecimento próprio, como venda de joias, e outros de ordem social, como aumento das queimadas e desmatamento da Amazônia. Só para citar alguns, pois a lista é extensa e as investigações não param, e a cada semana surge um novo crime absurdo.
Dessa vez descobrimos que Bolsonaro usou a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), subordinada ao Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, para espionar mais de 30 mil adversários. São eles advogados, juízes, políticos, jornalistas ou qualquer pessoa com notoriedade que faça críticas às suas ideias. Monitoramentos absolutamente ilegais que visavam exatamente o controle desses cidadãos para manutenção no poder.
Esse é um dos crimes de Bolsonaro que vão de encontro ao seu próprio discurso e que tem bom potencial para condená-lo e dividir seus apoiadores. Mas assim como os crimes de peculato, como no caso das joias, e tantos outros, é preciso fazer um grande esforço para espalhar a informação.
Esse movimento de extrema direita não é homogêneo, ou seja, existem grupos internos com seus próprios interesses. Usar do Estado para espionagem é algo que parte de seus apoiadores repudiam e apostaram na figura de Bolsonaro exatamente para fazer o oposto. Seria Bolsonaro o garantidor da mínima interferência do Estado na economia e, principalmente, na vida privada da população. Atacar os direitos individuais com uso da máquina é algo que causa calafrios na sociedade brasileira. Mesmo dentro do discurso confuso que Bolsonaro criou, onde mistura ditadura militar com liberdade individual, a parte da liberdade é um pilar fundamental para aglutinar parte considerável de seus apoiadores.
Além de desmobilizar esse movimento de extrema direita a partir da derrocada da figura de Bolsonaro e sua família, é fundamental conquistar os 30% da população historicamente disputados nas eleições. Enterrar essa ideologia extremista passa pela condenação de seus crimes, mas também passa pelo esforço coletivo da memória e denúncia diária. Denunciar, apontar os crimes, incoerências, hipocrisias e abusos é um trabalho de formiguinha necessário para a democracia e o processo civilizatório.
É claro que cabe ao governo atual o papel essencial de reconstruir o país, crescer a economia, melhorar a vida da população e comunicar de maneira clara todos esses avanços, mas cabe também à sociedade civil fazer seu papel no dia a dia. Trabalho que muitos de nós já estamos cansados exatamente pela maratona dos últimos anos, mas não podemos baixar a guarda. Mesmo que não seja na militância ativa de algum movimento social, que seja pela insistência e introdução de assuntos importantes no dia a dia.
A típica tática do arrependido é o desinteresse, finge não se importar mais. Muitos dos que estão quietos hoje gritaram sobre liberdade enquanto tentavam abolir a democracia. Se seu plano tivesse funcionado, estaríamos sob uma ditadura sendo espionados e perseguidos.
Nós que sobrevivemos os últimos anos no Brasil, apesar da fome, apesar da doença, apesar da falta dos direitos humanos, tivemos mais sorte que juízo. Mas é melhor sempre ter juízo, porque ninguém pode garantir que teremos sorte novamente.
O fascismo não acabará com a provável prisão de Bolsonaro e os seus. A frase “A cadela do fascismo está sempre no cio”, de Bertolt Brecht, continua verdadeira, ainda mais num país que nada fez para punir seus ditadores.
Mesmo assim, acredito, nesse caso, que bater nas bases é a forma mais eficaz de derrubar a estrutura. Conscientizar o povo brasileiro que a extrema direita é corrupta e sempre acaba em ditadura. Por isso, os casos do roubo das joias e esse agora da espionagem são potencialmente os mais poderosos para combater a estrutura confusa e complexa do bolsonarismo.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.