Narrado pelo próprio diretor do filme, Kleber Mendonça Filho, também autor de outras grandes produções brasileiras de nome, como "Aquarius" (2016) e "Bacurau" (2019), "Retratos Fantasmas" vem se juntar a outras obras-primas do cinema brasileiro e desbancar o mercado audiovisual. Muito mais que uma viagem ao passado de Recife, em Pernambuco, é um trabalho de resgate e conexão entre afeto, cultura, história e memória dos cinemas de rua brasileiros, como nunca se viu.
Dividido em três partes e com cenas familiares a várias cidades brasileiras, o longa-metragem, que se passa em primeira pessoa, discute as transformações do cenário urbano em espaços econômicos, que vão sufocando a identidade cultural da cidade recifense e, por conseguinte, o significado da experiência epifânica - e necessária - das salas de cinema. O que parece acontecer apenas em Recife, na verdade atinge o telespectador do documentário, que pode perceber que sua cidade ou a sua metrópole não é muito diferente daquela.
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Há fantasmas, eles estão ali, mas ninguém os enxerga. Tudo o que se tem são pessoas e lugares que “se foram” e retratos, que falam. Escondidos sob novas arquiteturas, as construções, os cinemas, as casas, as histórias e as fotografias tentam revelar algo perdido. É nesse momento que Kleber esbarra na ficção com maestria para descortinar o verdadeiro Centro da cidade e reconstruir as memórias urbanas e subjetivas antes perdidas pelo tempo e pela superposição dos templos evangélicos, das farmácias e do mercado dominante.
Mergulho pessoal e memória coletiva
Partindo de suas memórias pessoais, no tempo em que tinha entre 13 e 25 anos de idade, o diretor exibe filmagens antigas, capturadas diretamente por sua antiga câmera e registradas em fitas VHS. Inicialmente, o foco está em sua residência, família, vizinhança, momentos de lazer e seu processo criativo. Kleber compartilha detalhes íntimos de sua vida, incluindo o endereço antigo, o nome e a profissão de sua mãe, bem como suas aspirações como cineasta amador e depois estudante de cinema. Esses pormenores, inicialmente aparentemente triviais, isolados e de pouca importância, vão ganhando significado através da lente da câmera e se transformando em memórias raras.
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Momentos como a "imagem fantasma" na sala de estar ou a gravação do latido do cachorro falecido da vizinha refletem a melancolia da perda e a inexorabilidade do tempo. Essa mudança é visível nos espaços físicos, notadamente nos apartamentos que agora se protegem com grades, na construção de novos edifícios e na transformação das casas icônicas da vizinhança em grandes prédios residenciais padronizados.
A narrativa da primeira parte expõe a perda da inocência, evidenciada pela crescente distância entre esses espaços e um mundo anteriormente idealizado. À medida que tudo se fecha, as consequências da realidade e da modernidade aparecem. A trama atua como uma tentativa de preservar a infância e a inocência de Kléber, que, por instinto ou dedução, paradoxalmente já antecipava o desaparecimento do que presenciava.
'Eu amo o centro do Recife'
Na área central da cidade, de meados da década de 1950 até o início dos anos 2000, várias residências exibiam blockbusters de ação, comédias e filmes de arte, atendendo a uma ampla gama de públicos. Contudo, vale lembrar que esses lugares desempenharam um papel significativo na formação cultural de muitas pessoas e encontram-se em ruínas. Desses fantasmas, o cineasta não recebe as ‘aparições’ com surpresa ou melancolia, mas sim com um afeto particular. Em outro momento, ele destaca como os filmes proporcionam a essas figuras uma nova vida, alcançando um público que talvez nem soubesse de sua existência em suas vidas.
À medida que o enredo avança, sem alarmismo, o que é pessoal ganha faces reconhecidas e a interpretação do todo fica para o espectador. A reflexão sobre a essência do próprio sentido do cinema e da nossa existência, bem como do compromisso social com a memória é bem construída e leva a que nos apaixonemos também pelo cinema e a sua aura. O São Luiz, agora em reforma, é maior forma de expressão de resistência. Com narrativas de diferentes tempos históricos, interconectados, Kléber mostra que lutar pelas artes é uma forma de lutar por nós mesmos, lutar pela nossa identidade individual e coletiva e contra o perigo do esquecimento. Não meramente um lazer, mas um processo de formação cultural, cognitiva, e principalmente, humana.
Cinema como imortalização
Não há respostas, o que se vê são grandes memórias e pessoas “invisíveis”, que não sabem mais o que sua presença representa para o lugar onde vivem. Falta identidade. “Retratos Fantasmas” é mais que um filme nostálgico realista, é uma tentativa de acerto de contas com a memória, um resgate, uma crítica ao individualismo e ao sistema consumista, à marvelização das salas brasileiras e à reprodutibilidade técnica a que se prestam os cinemas do mundo.