Retratos Fantasmas, de Kleber Mendonça Filho, é um documentário que pode ser visto como uma experiência arqueológica não apenas das imagens, da história e da cultura em sentido amplo, muito além de Recife, mas, principalmente, uma arqueologia da memória, das relações entre tempos e espaços, tanto no sentido externo, aquilo que pertence aos elementos cronológicos dos fatos, da realidade, quanto internos, os campos psicológicos, emotivos, nos quais residem vivências de afeto, fantasia, sutileza e lirismo. É como identificar ou mapear as marcas do tempo, as rugas desenhadas na própria película. Rugas que valem pela riqueza da experiência ou por mostrar a dor de tantos abandonos. Palimpsestos que residem nas camadas mais profundas do aparente vazio de uma tela de cinema.
A partir de seu percurso pessoal, em que o diretor rememora e descreve seus caminhos estéticos e profissionais, tendo como laboratório inicial o apartamento onde viveu com a mãe e o irmão, locação para tantas histórias e itinerários cinematográficos, acompanhamos as relações entre o espaço da casa, casulo, ventre e o bairro, a praça e a cidade, intercalados pelos cinemas e filmes, por histórias que se perpetuaram na tela ou fora dela, de narrativas que se construíram noutras camadas diegéticas. Caminhos sem volta, sonoridades do além, como os ecos de uma mascote involuntária chamada Niko.
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O avanço tecnológico paradoxalmente aliado ao retrocesso político, econômico, moral e religioso de nossa sociedade fechou as portas de muitas salas de cinema, em muitos dos casos “virando” igrejas de fundamentalistas de segmentos neopentecostais, demarcando, contudo, a diferença entre templo/cinema e igreja/comércio da fé. As sementes do fascismo à brasileira que vimos proliferar de uns tempos para cá, cujo exorcismo só poderá ser feito pela construção do pensamento crítico e muito investimento em cultura e educação.
Há muitos filmes dentro deste filme, literal e simbolicamente, cuja estrutura narrativa documental se elabora nos detalhes e nos muitos subtextos às vezes escondidos nos próprios letreiros das fachadas dos antigos cinemas ou nos títulos incompletos, desbotados de alguns filmes.
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A película borrada como a maquiagem de tantos carnavais. As muitas situações narradas pelo Sr. Alexandre, projecionista dos antigos cinemas, assim como o camelô, Paulo Barbosa, que catava os cartazes e restos de filmes no lixo para expor, vender ou mesmo doar a quem tivesse interesse. Um colecionador de fantasias. Ao seu modo lutando contra muitas tragédias.
O filme vai aos poucos mergulhando nas ruínas da memória, contextos sociais e políticos. Há uma particular relação entre as narrativas ficcionais das películas e as narrativas impostas pela própria realidade. Cinemas que nasceram de espaços que eram igrejas e que depois viraram novamente igrejas, porém, sob outra conotação, aquela já mencionada. Um fluxo de história que explicita nossas feridas de formação. Narrativas sobrepostas que costuram e revelam os nossos dramas históricos e diários.
Sutilmente, um dos nossos maiores contadores de histórias, Ariano Suassuna, aparece entrando com a esposa em um cinema, uma figura que muito nos lembra aquele Quixote do filme de Orson Welles que não estabelece as relações entre a tela e a realidade. O velho Suassuna carregava esse quixotismo na alma, daí ter sido um exímio contador de causos entre a página, o palco e a tela, cuja presença no documentário mostra uma das muitas camadas dessa arqueologia imagética. Nenhuma fala, mas muito subtexto.
Retratos Fantasmas também nos remete àquela solidão de um domingo à tarde, porém, sem as saudosas matinês. Uma projeção de nossa orfandade cultural, sem as lojas de discos, sem os sebos de livros, sem os encontros nas praças, sem o centro da cidade e sem os antigos cinemas. O odor do abandono.
Assim, o documentário se delineia como um rio sem margens. Apenas útero e memória, amplitude e profundidade.
Adeilton Lima é tor e professor