KLEBER MENDONÇA FILHO

Retratos Fantasmas, de Kléber Mendonça Filho: memórias entrelaçadas com afeto

Em seu novo filme, o diretor se abre e expõe memórias e pensamentos como poucas vezes visto no cinema, por Marcelo Lyra

Retratos Fantasmas.Créditos: Wilson Carneiro da Cunha/Divulgação
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Por Marcelo Lyra

Prezado Kleber. Assisti ao documentário Retratos Fantasmas e planejava escrever uma crítica como tantas que já fiz, mas seu filme é tão pessoal que mexeu com minhas memórias. Assim, o que acabou saindo aqui foi praticamente uma carta para você. Isso porque assistir a Retratos Fantasmas é como se sentar numa mesa de boteco para conversar sobre mudanças nas cidades, nos cinemas e nas nossas vidas. Sobre a passagem do tempo, em essência.

Todo filme tem muito dos diretores, mas Retratos Fantasmas tem também seu prédio (cenário de seus primeiros filmes), seu bairro e a cidade do Recife. Sua casa que cresce e muda como a cidade. Em paralelo vemos os cinemas que fecharam. Seja universal, cante sua aldeia diz a frase clássica. Não por acaso seu filme faz sucesso em vários países.

Uma coisa que me agrada é que você não cai no lugar comum de lamentar a perda de tantos cinemas de rua. Apenas constata essa consequência do crescimento e das mudanças na cidade. Na tela vemos cenas antigas do centro de Recife com as filas diante das bilheterias em contraste com o abandono das ruas nos dias de hoje. A igreja diante do hotel famoso décadas atrás, em contraste com o bairro atual onde o velho hotel foi substituído por um empreendimento gigante. A velha igreja resiste enquanto muitos cinemas viram igrejas. Ironicamente o Cine São Luís, um dos últimos baluartes do cinema de rua, tinha sido construído no lugar onde no século XIX havia uma bela igreja anglicana.

Há um paralelo com nosso próprio envelhecimento. Você aparece com sua mãe no final dos anos 80, rosto juvenil em contraste com rugas e cabelos brancos de hoje em dia. Sônia Braga aparece estonteante como musa nos pôsteres de Dona Flor ou A Dama do Lotação, e também nos dias atuais, num intervalo das filmagens de Aquarius, onde foi sua atriz.

Você se abre e expõe memórias e pensamentos como poucas vezes vi no cinema. João Moreira Salles e a relação com seu mordomo no belíssimo documentário Santiago me vem à mente. Sua mãe, seu gato, o cachorro do vizinho, seus filhos, seus parceiros de filmes, o pôster da obra prima Psicose na porta de seu quarto seguido por cenas da atriz Janet Leigh caminhando no Recife com o marido Tony Curtis... Tudo entrelaçado com açúcar e com afeto.

Crescemos e mudamos como as ruas, os bairros... Os cinemas viraram lojas ou igrejas e você visita esses lugares. Vamos junto com sua câmera atenta aos resquícios das antigas salas. A trilha sonora de filmes antigos exibidos nesses cinemas extintos embala as cenas como ecos de um lamento fantasma, versão sonora do inexplicável fantasma da fotografia mostrada no início do filme.

Retratos Fantasmas é um filme de memória afetiva que estimula nossas próprias memórias. Diante dos cinemas fechados no Recife me vieram à mente os extintos cinemas queridos da minha adolescência em Santos (SP): o Cinema 1, na avenida da praia, com uma lanchonete dentro como o Cinesesc de São Paulo, que tanto amamos. Ao menos este resiste bravamente como o São Luís. Já o velho Cinema 1 virou casa de shows, depois restaurante e sei lá o que é hoje. Recentemente mais dois cinemas de rua de Santos, o Indaiá e Indaiá Arte tiveram o prédio demolido para dar lugar a um megaempreendimento desses de 30 andares, cuja propaganda trata como se fosse uma coisa boa o prédio ocupar o lugar onde antes havia um cinema. E ainda ironiza: “É um empreendimento cinematográfico”.

Vendo o jipe Gurgel branco das cenas de O Som ao Redor me vieram à mente algumas caronas com você no Gurgel idêntico que possuo há mais de 30 anos. Certa vez, perdidos numa rua errada em São Paulo a bordo desse Gurgel, sua mulher Emilie Lesclaux sacou o celular com o aplicativo Waze, na época desconhecido para mim, e foi me orientando quanto ao melhor caminho até a empresa de finalização onde vocês dariam os últimos retoques justamente em O Som ao Redor. Lembrei disso não porque andávamos num Gurgel para finalizar um filme em que um Gurgel aparecia e ainda era estrelado pela atriz Ana Rita Gurgel, mas porque lembro o quanto achei notável uma francesa que morava no Recife ensinar o caminho no trânsito a um santista que morava em São Paulo há mais de 20 anos. Na época refleti sobre o quanto a extraordinária capacidade de organização da antenada Emilie fez com que ela se tornasse uma produtora fundamental em seus filmes, escolhendo os melhores caminhos para as produções e permitindo a você manter o foco na criação e direção.

Por último aquela inesperada sequência final em ficção dentro do documentário. Você vira ator e entra no Uber pedindo para passar por vários pontos da cidade. Para mim é uma espécie de resumo do próprio filme que também revisita esses lugares. Essa síntese dialoga com o início de Cidade de Deus, do Fernando Meireles, onde uma galinha escapa de seu destino de virar churrasco, um resumo do próprio filme em que Buscapé, personagem principal (narrador da trama como você neste Retratos), escapa de se tornar traficante. Essa discussão aparece em uma sequência de seu primeiro longa-metragem, o documentário Crítico, onde eu mesmo sou um dos entrevistados. Seus filmes tem muitas conexões entre si.

Nesse final de Retratos Fantasmas sua conversa com o motorista do Uber incorpora um elemento fantástico presente em vários de seus filmes: o motorista desaparece misteriosamente, e você o procura dentro do carro como anos atrás um personagem seu procurou a garota do algodão por baixo da porta do banheiro onde ela havia desaparecido. Retratos Fantasmas entrelaça filmes, cinemas e memórias, dialoga com afetividades de todos que amam cinema. Uma experiência única que um bom cinéfilo não deve perder.

*Marcelo Lyra é formado em Jornalismo pela PUC-SP em 1989, cursou as disciplinas de montagem, crítica de cinema e de história da crítica, ambos na Escola de Comunicação e Artes da USP; Foi crítico de cinema do Caderno 2 do Jornal O Estado de S. Paulo, do Jornal da Tarde e colaborador das seguintes publicações: Revista de Cinema, Jornal do Brasil, Revista Bizz entre outras.