Kleber Mendonça Filho, de 'Aquarius' e 'O Som ao Redor', divulga carta ao ministro da Cultura

Carta é uma resposta à cobrança do MinC, que determinou a devolução de R$2,2 milhões referentes a recursos captados para o longa "O Som ao Redor". "Não trata-se de uma questão privada, mas de liberdade de expressão", escreveu o diretor. Leia

Foto: Alyne Pinheiro/Secretaria de Educação de Pernambuco
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O diretor de cinema e roteirista Kleber Mendonça Filho, que dirigiu filmes aclamados como "O Som ao Redor" e "Aquarius", divulgou nesta terça-feira (29) uma carta aberta dirigida ao ministro da Cultura, Sérgio Sá Leitão, em que cobra diálogo diante da notificação do órgão que determina a devolução de R$2,2 milhões referentes a recursos captados para o longa "O Som ao Redor". De acordo como MinC, o filme teria recebido recursos acima do teto do edital para produções de baixo orçamento. Kleber Mendonça, no entanto, sustenta que a captação foi autorizada pela Agência Nacional de Cinema (Ancine). Na longa carta, o diretor contextualiza o cenário hostil atual para artistas no Brasil e sustenta que "não trata-se de uma questão privada, mas de liberdade de expressão". Leia a íntegra.   Carta aberta ao Ministro da Cultura Sr. Sergio Sá Leitão e à sociedade
Recife, 29 de Maio de 2018.
 
Caro Ministro de Estado da Cultura, Sr. Sergio Sá Leitão
 
Dirijo-me ao senhor, através da presente Carta Aberta, por acreditar que essa troca tem um sentido democrático. Esse texto também está sendo compartilhado com o público, entidades de classe, a imprensa e profissionais da cultura no Brasil e no exterior. Como cidadão brasileiro, artista e trabalhador da Cultura, ainda vejo o nosso país como uma Democracia e entendo que o Ministério da Cultura tem como missão divulgar, zelar e fomentar nossa produção cultural, além de dialogar com os trabalhadores da Cultura. De forma institucional, o senhor deve nos representar, mesmo que talvez tenhamos ideias distintas sobre temas que nos são caros, como o Cinema, a Cultura e o país.
 
Foi como cidadão e cineasta que recebi perplexo uma comunicação do seu Ministério, e isso ocorreu por email no dia 29 de março último, durante as 14 semanas de trabalho no meu filme novo, Bacurau, co-dirigido por Juliano Dornelles. Bacurau é uma co-produção franco-brasileira. Estávamos no Sertão do Seridó, no Rio Grande do Norte, quando a comunicação do MinC nos informou que todo o dinheiro do Edital de Baixo Orçamento utilizado na realização de O Som ao Redor, meu primeiro longa metragem, realizado em 2010, teria de ser devolvido.
 
Desde o fim das filmagens de Bacurau, há duas semanas, e isso inclui uma pesada desprodução, que tentamos agendar uma visita com o senhor para discutir essa questão. Tentamos de várias formas, contato pessoal e marcação de uma agenda oficial, sem sucesso.
 
A carta por nós recebida do MinC sugere uma punição inédita no Cinema Brasileiro e que nos pareceria mais adequada a produtores que não teriam sequer apresentado um produto finalizado, e isso após algum tempo de diálogo. A carta veio, inclusive, do mesmo Ministério da Cultura que indicou O Som ao Redor para representar o Brasil no Oscar, em 2013.
 
É de suma importância que esse meu escrito não perca de vista a natureza dessa situação. No Brasil dos últimos tempos, a nossa capacidade de expressar indignação como cidadãos vem sendo diminuída, creio que por dormência.
 
E é bem aqui onde assumo resignado uma posição habitual demais no nosso país, a de um cidadão que precisa defender-se de acusações injustas. O valor exigido para devolução (com boleto já emitido) na carta do Ministério da Cultura é R$ 2.162.052,68 – Dois Milhões Cento e Sessenta e Dois Mil e Cinquenta e Dois Reais Com Sessenta e Oito Centavos - já corrigidos.
 
O Som ao Redor custou R$ 1,700,000,00 - Um milhão e setecentos mil reais - no seu processo de produção, nos anos de 2010 e 2011. Em câmbio corrigido do dia de hoje, O Som ao Redor custou 465 mil (quatrocentos e sessenta e cinco mil) dólares. O MinC deveria premiar produtores que fazem tanto e que vão tão longe com orçamento de cinema tão reconhecidamente enxuto.
 
Os recursos complementares foram captados no âmbito estadual, através do Edital de Audiovisual do Funcultura de 2009 no valor de R$ 410.000,00, sendo que esse valor foi devidamente declarado e autorizado pela ANCINE, após comunicação entre as duas instituições (Ancine e Secretaria do Audiovisual). São informações públicas e declaradas, já há oito anos:
 
MinC/Edital: Um milhão de reais. — Petrobras: 300 mil reais. (Obs: o prêmio do edital da Petrobras era de 571 mil 805 reais, mas saiba que 271 mil 805 reais foram devolvidos para respeitar o limite definido claramente no edital para verbas federais - de um milhão e 300 mil reais). — Funcultura Pernambuco: 410 mil reais, verba estadual (não federal).
 
O Som ao Redor é fruto do Concurso de Apoio à Produção de Longas Metragens de Baixo Orçamento 2009. Destaco aqui o trecho do Edital:
 
"11. DAS VEDAÇÕES
 
11.1 É expressamente vedada:
 
(...)
C) O acúmulo do apoio previsto neste Edital com recursos captados através das leis 8.313/91 e 8.685/93, bem como com recursos provenientes de outros programas e/ou apoios concedidos por entes públicos federais, acima do limite de R$ 300.000,00 (trezentos mil reais)”.
 
Isso parecia entrar em conflito com o item 2.1d acerca da definição de obra cinematográfica de baixo orçamento:
 
“2.1. Para fins deste Edital, entende-se que:
(...)
d) OBRA CINEMATOGRÁFICA DE LONGA METRAGEM DE BAIXO ORÇAMENTO é aquela obra audiovisual cuja matriz original de captação é uma película com emulsão fotossensível ou matriz de captação digital, cuja destinação e exibição seja prioritariamente e inicialmente o mercado de salas de exibição, cuja duração seja superior a setenta minutos e cujo custo de produção e cópias não ultrapasse o valor de até R$ 1.300.000,00 (um milhão trezentos mil reais);”
 
Nosso consultor jurídico à época levou à Coordenação de Editais da Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura a dúvida sobre recursos não-federais. A SAV afirmou, via email oficial, que a captação de recursos não-federais (no nosso caso, o Funcultura pernambucano) NÃO VIOLARIA os limitadores dispostos no edital de Baixo Orçamento em questão. Essa resposta está documentada (“Sim, o edital só veta recursos federais acima de R$ 300 mil.”). Nós nunca faríamos alteração de orçamento sem o acompanhamento das agências responsáveis, elas próprias regidas por regras internas duras.
 
Pergunto ao senhor se houve comunicação entre o MinC e a Ancine para tentar esclarecer essa questão institucional que não deveria ser transformada numa punição inadequada para os produtores de um filme exemplar.
 
Por que a denúncia feita por um funcionário da Ancine encontrou sentido dentro do MinC, mas não na própria Ancine, onde o processo interno não foi adiante?
 
O MinC também não observou a vedação acima, nem tampouco registra nossa prova de boa fé documentada de termos nos comunicado com a SAV para esclarecer essa questão. Também não observa a maneira correta com a qual tratamos o patrocínio da Petrobras, respeitando o limite claro de um milhão e trezentos mil reais às verbas federais.
 
A interpretação também nos parece equivocada quando analisada a praxe do processo de captação no setor; a interpretação é absurda ainda por representar verdadeiro enriquecimento injustificado da União (a devolução de todo o valor do edital e com valores corrigidos) em virtude da entrega do filme (reconhecida pela própria AGU em parecer).
 
Na época, outros filmes dos primeiros editais de Longas Metragens de Baixo Orçamento esclareceram da mesma forma ética a vedação destacada acima, complementando seus orçamentos com recursos estaduais ou municipais. São informações públicas disponíveis também há anos. Vale observar que o edital de Longas de Baixo Orçamento de 2011 viu o seu texto passar por alteração, finalmente vetando de fato qualquer tipo de recurso extra, municipal e/ou estadual.
 
Caro senhor ministro, preciso ainda registrar que a carta recebida do vosso MinC veio como uma surpresa, especialmente por não termos tido a chance de dialogar com o Ministério. Como artista, o mínimo que espero de um Ministério como o da Cultura é o diálogo, uma troca de informações numa questão importante para todas as partes.
 
Sou um artista brasileiro num momento extremamente difícil no nosso país, onde têm sido frequentes acusações que tentam criminalizar toda a classe artística, do teatro à literatura, do Cinema à música e às artes plásticas.
 
Creio que podemos concordar que o resultado final dessa multa absurda para O Som ao Redor, decidida internamente e na esfera administrativa do Ministério da Cultura, irá inviabilizar, de forma grosseiramente burocrática, nosso trabalho como produtores de cinema, um trabalho exemplar sob qualquer análise feita.
 
Entendo que o senhor, como Ministro, tem a capacidade de compreender a questão aqui colocada, para que a mesma seja discutida administrativamente de maneira construtiva e justa no Ministério da Cultura. Continuaremos prontos para dialogar.
 
Como fica impactada a produção cultural brasileira atual, com sentimento de vulnerabilidade incompatível com um pensamento democrático, a partir de um incidente como este? Não trata-se de uma questão privada, mas de liberdade de expressão.
 
Ironicamente, O Som ao Redor é fruto de um olhar para o Brasil com algum senso crítico a partir do Recife, Pernambuco, e surgiu através do mesmo Ministério da Cultura a partir do que na época era uma maneira nova de ver o edital de cinema.
 
Foi uma conquista e tanto na década passada, quando critérios de cota regional passaram a vigorar, quebrando o molde de um passado onde a representação era exclusiva de produções da região sudeste. Foi assim que eu, realizador pernambucano, do Nordeste, pude fazer esse primeiro longa metragem de ficção.
 
Penso muito nos filmes que representam o Brasil internacionalmente, nesse ano de 2018. Benzinho, de Gustavo Pizzi, O Processo, de Maria Augusta Ramos, Azougue Nazaré, de Tiago Melo, Los Silencios, de Beatriz Seigner, Diamantino, de Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt, Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos, de Renée Nader Messora e João Salaviza, As Boas Maneiras, de Juliana Rojas e Marco Dutra. Uma lista diversa de filmes que simplesmente não eram feitos dez anos atrás e que hoje representam o Brasil, aqui e fora.
 
Senhor ministro, a luta ainda está longe de ser encerrada, enquanto mais realizadores negros, indígenas, de produções dirigidas por cineastas mulheres não encontrarem apoio e incentivo como forma de valorizar e promover nesse país a diversidade de gênero e raça de maneira radical e contínua.
 
Para terminar, O Som ao Redor retrata uma realidade conhecida no Brasil. Trabalhadores da cultura enfrentam as desigualdades regionais, a falta de apoio, a falta de um espaço de visibilidade para as suas obras, os entraves de uma burocracia paralisante, os (mau)humores do mercado cultural, a disputa “Davi e Golias” com produções internacionais milionárias.
 
São muitas as agruras para contar histórias brasileiras, para falar sobre a nossa memória, ou a falta dela, para fazer brilhar a tradição, ou a quebra dela, enfrentar dilemas de um país dividido pela desigualdade social e pela ação de políticos torpes ao longo de décadas de história. Para poder celebrar a diversidade em todas as suas expressões, é preciso ter alguma coragem, e por sorte, o Brasil tem uma comunidade artística gigantesca.
 
Para isso, senhor Ministro, seguiremos dignos. Foi por isso que filmei O Som ao Redor, Aquarius e agora Bacurau, com personagens que interagem com o Brasil, mas o fazem entendendo o quanto são dignos.
 
Grato pela atenção.
 
Kleber Mendonça Filho, curador de cinema, roteirista, diretor de cinema (Vinil Verde, Recife Frio, Crítico, O Som ao Redor, Aquarius)