24 de junho de 2022. Data historicamente triste. O dia em que Roae x Wade foi enterrada. Um colossal passo atrás nos EUA e que traz imensa repercussão nefasta em todo o mundo.
Em tantos filmes e séries norte-americanas já nos deparamos com personagens citando a famosa decisão da Suprema Corte dos EUA (Roae x Wade) emanada em 1973, aquela que reconheceu o direito das mulheres a interromper uma gravidez indesejada em todo território estadunidense.
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Alguns poderão afirmar que, a rigor, o principal tribunal dos EUA com essa nova decisão de apenas delegou para cada estado decidir permitir ou não a interrupção da gravidez.
Na prática, entretanto, o novo entendimento jurídico torna imediatamente ilegal o aborto em 13 estados - abrindo espaço para retrocessos em pelo menos metade daquele país.
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Tal ataque vitorioso às mulheres não foi um raio em céu azul. A sempre militante direita contrária aos direitos sexuais e reprodutivos vinha acumulando várias vitórias nas legislações de diversos estados. O trumpismo (neofascismo à moda estadunidense) não acabou e nem ao menos arrefeceu com a derrota do chefe Donald nas eleições de 2020.
A Suprema Corte tem 9 membros que são indicados pelos presidentes da República. A maioria de 6 x 3 contrária aos direitos sexuais e reprodutivos só foi possível porque coube à Trump indicar um terço da atual composição da maior tribunal.
Modelo similar para compor o Supremo é adotado no Brasil - com a diferença, talvez, de que lá, as e os indicados seguem as posições programáticas de quem os indicou. Não mudam de lado nem se acham acima da política partidária (se bem que aqui os que saíram e saem da linha são apenas os indicados nos governos de esquerda; os indicados em governos liberais conservadores guardam coerência).
Nos estates, sabemos antecipada e nitidamente como votará o/a juiz(a) republicano e também o comportamento que irá adotar seu/sua antípoda democrata.
Não há ilusões sobre “imparcialidade” ou “neutralidade’ de quem compõe o principal órgão judiciário do país. Lições úteis para esquerda brasileira, não é?
O reconhecimento ao direito ao aborto legal em 1973 foi fruto da ascensão do movimento de mulheres, do feminismo, do movimento negro, das jornadas pelos direitos civis. Luta da esquerda, dos liberais - de uma ampla coalizão social e política.
Deu-se no contexto das grandes batalhas progressistas, revolucionárias, reformistas e democráticas que, desde o fim dos anos 1950 aconteciam em nos EUA – e em todo o mundo.
A excelente série Mrs. America - com Cate Blanchet - conta a história da icônica Betty Friedan - retratando os primórdios da luta feminista liberal nos anos 1970.
Houve muita ação social para empurrar a juizada reacionária da Suprema Corte a reconhecer os direitos das mulheres em 1973.
A guinada reacionária de agora espelha, portanto, uma nova correlação de forças nos EUA e no mundo. É mais uma evidência da força regressiva e crescente do conservadorismo, do extremismo, do reacionarismo e do neofascismo.
Tal decisão machista da Corte maior chega a ser uma humilhação histórica ao campo liberal-democrático dos EUA - que é fortíssimo - na indústria cultural, por exemplo. É uma pancada em Hollywood, digamos assim.
A regressão histórica na luta das mulheres, dos progressistas, democratas, da esquerda de todos os matizes não é pequena. E não se circunscreverá às fronteiras estadunidenses, por óbvio.
Precisamos reconhecer o tamanho e a força do golpe. Afinal, estamos falando de um passo obscurantista imenso no próprio centro do império.
A notícia positiva é que já existem amplas mobilizações contrárias à nova decisão da Corte Suprema. Desde falas das democratas moderadas Nancy Pelosi (presidente da Câmara dos Deputados) e Michele Obama até a indignação do conjunto dos movimentos feministas, que já saíram às ruas protestando.
De qualquer forma, trata-se de um sinal de alerta iniguinorável.
São tempos que nos remetem à distopia de uma Gilead. GIlead é lá, é aqui - ameaça o mundo inteiro.
No Brasil nem o direito ao aborto legal e seguro foi conquistado até hoje. Todos os anos, milhares de mulheres pobres, pretas e vulneráveis seguem não só desamparadas, mas sobretudo criminalizadas se pretenderem ou ousarem tentar interromper uma gravidez.
Aqui tivemos uma juizinha de Santa Catarina, loira fake, super-reaça que tentou obrigar uma menina de apenas 11 anos - que havia sido estuprada, a parir.
E temos não só o Bolsonaro na ofensiva como também algo mais perene, o bolsonarismo - já entranhado e espalhado em nosso tecido político, ideológico, social, institucional.
“Espinha ereta, cabeça quieta, coração tranquilo”.
Muito fogo no coração, frieza na mente e força para remar contra o obscurantismo. Muitos vivas à luta das mulheres, no mundo e no Brasil.
Julian Rodrigues, professor e jornalista, é militante LGBTI e de Direitos Humanos; doutorando em América Latina pelo Prolam-USP.