TRANSFORMAÇÕES HISTÓRICAS

A polêmica entre Coelho Neto e Lima Barreto sobre futebol – Por Raphael Fagundes

É importante observar como os intelectuais do limiar do século XX eram dedicados a debater diversos aspectos da composição social do brasileiro

O futebol e a construção social do brasileiro.Créditos: Agência Brasil
Escrito en OPINIÃO el

Nos finais do século XIX e início do século XX, os escritores brasileiros, empenhados na disseminação da civilização nos trópicos travaram verdadeiros combates nos periódicos. A “geração de 1870” por meio de um engajamento intelectual interferia nas transformações históricas do país, fomentando polêmicas de um teor retórico intenso.

Ofensas eram feitas entre os escritores para todo mundo ler. “Das ameaças e xingamentos", explica Roberto Ventura, “os adversários chegavam a processos de difamação nos tribunais e mesmo ao suicídio, recurso extremo na defesa da honra ultrajada".[1]

Alguns debates terminavam em duelo, como o ocorreu entre Olavo Bilac e Pardal Mallet, em 1889. E o mais trágico foi o fim de Raul Pompeia que “sentindo-se desmoralizado e desonrado, suicidou-se com um tiro no coração, mas deixou antes a seguinte nota: ‘Ao jornal A Notícia, e ao Brasil, declaro que sou um homem de honra’”.[2]

O debate que veremos a seguir não chegou a tais extremos, mas foi polêmico. Todas as citações e as análises expostas a seguir foram retiradas do livro “Footballmania” escrito por Leonardo Affonso de Miranda Pereira,[3] professor da PUC-Rio.

O escritor Coelho Neto, membro da Academia Brasileira de Letras, foi um grande entusiasta do futebol. Seus dois filhos eram jogadores do Fluminense e, ele mesmo, foi o autor do primeiro hino do clube. O esporte seria para Coelho Neto um meio de criar no país uma “nova raça”, que deixasse definitivamente para trás a sua malfadada herança cultural. Isso porque o jogo vinha da Europa, sendo, portanto, visto como um símbolo da civilização. Neto escreve em uma passagem do hino do Fluminense:

“Quem vence em campo é o Fluminense

Que é, como a Pátria, um ser ideal.

Assim nas lutas se congraça

Em torno de um ideal viril

A gente moça, a nova raça

Do nosso Brasil”.

Coelho Neto era médico e via no esporte algo que poderia fazer bem à saúde da juventude: “Distração para os rapazes, atrativo de moças, uns a mostrarem formas de atletas, outras exibirem os últimos figurinos”.

O literato enxergava os jogadores como embaixadores do povo, patriotas, quase que soldados:

“…para sufrágio da glória do nosso Brasil, os seus nomes puros com a promessa de que irão por eles onde que a pátria os invoque, pôr à prova, em luta de vida ou morte, o que adquiriram nos exercícios em seu campo: a robustez, a saúde, a disciplina, a solidariedade, a coragem e o amor ao pavilhão do club, que é como uma folha da árvore cuja fronde é a bandeira nacional, verde como a folhagem e dourada porque dá nela o sol e ainda com um pouco de céu aberto em flor azul entre o verde e o amarelo”.

Coelho Neto tornava-se uma referência de peso para os esportistas. Se, como antes, ele continuava a ser o orador oficial dos principais acontecimentos esportivos, como a abertura do torneio sul-americano de 1919, sua participação nesses eventos rendia-lhe agora maiores responsabilidades.

Ele tornava-se, então, em 1919, o representante da Associação Paulista de Sports Atléticos na Confederação Brasileira de Desportos. Fundou a revista “Athlética” que defendia o futebol como um instrumento do homem branco para regenerar a raça brasileira, disciplinando e controlando indivíduos que, de outra forma, se entregariam a todo tipo de vícios e degenerações: “O futebol está preparando as gerações futuras, sadias e viris e acabando com a raça enfezada dos pigmeus”.

Mas alguns literatos eram inimigos ferrenhos do esporte inglês. Um deles era o escritor Lima Barreto. Assustado com a gravidade que as discussões sobre o jogo iam assumindo, o literato parece não entender, a princípio, como o esporte bretão poderia ser levado a sério por seus defensores:

“Diabo! A coisa é assim tão séria? Pois um divertimento é capaz de inspirar um período tão gravemente apaixonado a um escritor?... Reatei a leitura, dizendo cá com meus botões: isto é exceção pois não acredito que um jogo de bola e, sobretudo jogado com os pés, seja capaz de inspirar paixões e ódios. Mas, não senhor! A coisa era a sério e o narrador da partida, mais adiante, já falava em armas”.

Barreto parecia não estar convencido da penetração social do futebol, vendo nele ainda um esporte de poucos. Já de início ele mostra seu incômodo com os termos ingleses utilizados pelos seus propagadores, que fingia não entender:

“...parecia-me tudo aquilo escrito em inglês e não estava disposto a ir à estante, tirar o [meu dicionário] Valdez e voltar aos meus doces tempos dos significados. Eram só backs, forwards, kicks, corners”.

Naquele período alguns termos específicos do futebol ainda não haviam sido aportuguesados como escanteio, lateral, tiro de meta etc.

Na ocasião da inauguração da piscina do Fluminense em 1919, Coelho Neto faz um outro discurso de apologia ao futebol voltado para a função cívica do esporte na construção de uma nova raça nacional. “O atleta”, declara Neto, “assim como se reforça e adestra, submete o espírito ao regime. E o entusiasmo com que se bate pelo pavilhão do seu clube, sublima-se, mais tarde, no culto da bandeira”.

Aos olhos de Lima Barreto, no entanto, o discurso parecia um verdadeiro pecado. Revoltado, ele ataca impiedosamente o consagrado escritor em uma crônica escrita duas semanas depois da inauguração da piscina. Caracterizando o romancista como “o sujeito mais nefasto que tem aparecido no nosso meio intelectual”.

Outro tipo de fronteira viria, ainda, somar-se às diferenciações sociais desejadas pelos membros dos grandes clubes de futebol que eram então combatidas pelo literato: a distinção de raça, que vedava aos negros a participação nos grandes clubes.

O ódio de Barreto ao futebol era tanto que ele chega a fundar a “Liga Contra o Foot-Ball”. De seus comentários surge a imagem de um jogo brutal e sem sentido, muito diferente do grande elemento de regeneração social pintado pelos seus defensores. O literato recolhe em 1920, na imprensa diária, notícias como aquelas publicadas no Jornal do Comércio, sobre um menino que quebrara a perna jogando bola e outro que morrera de um ataque do coração. O próprio Coelho Neto viria a experimentar os argumentos do seu oponente: depois de um acidente em campo durante a disputa de uma partida do Fluminense contra o São Cristóvão em 1922, Mano, seu filho mais velho, morria aos 24 anos em meio à disputa do campeonato sul-americano daquele ano.

Para Lima Barreto, portanto, o futebol não tinha um papel civilizador, mas o de estimular a violência e a desordem na cidade.

Em 1920, um episódio trágico envolveu novamente os dois em uma polêmica. Cansada de ver seu marido, o carteiro Washington Neves, trocá-la pelos campos de futebol do subúrbio, a jovem Albina suicidara-se, em um caso de grande repercussão na cidade. Na mesma semana, Coelho Neto publicava uma crônica ironizando a atitude de Albina: “O seu gesto desprendido e trágico foi muito forte para ter sido causado por uma bola de couro”.

Sim, Neto fazia um paralelo entre a atuação de Washington nos campos e na cama.

Lima Barreto, por sua vez, afirmava ironicamente que Albina seria “um coração fraco que não está a par das conquistas modernas da civilização”, usando o episódio para criticar os defensores da bola.

Os defensores do jogo e seus combatentes mostravam seus pontos em comum: incapazes de atribuir aos grupos das ruas a possibilidade de uma escolha autônoma, acabavam ambos por vê-los como meros objetos ou vítimas dos seus discursos, caracterizando o futebol como um instrumento de manipulação dos trabalhadores espalhados pelas cidades - seja para sujeitá-los à dominação ou para “regenerar” a sociedade de seu passado e suas tradições indesejáveis.

No fim, em 1922, ano da Semana de Arte Moderna e da morte de Lima Barreto, o polêmico escritor reconhece a popularidade do futebol:

“Toda a gente, hoje, nesta boa terra carioca, se não fica com os pés ferrados, ao menos a cabeça cheia de tiro, joga o tal esporte bretão. Não há rico nem pobre, nem velho nem moço, nem branco nem preto, nem moleque nem almofadinha que não pertença virtualmente pelo menos, a um clube de futebol”.

E de fato o futebol se popularizou. Mas é importante observar como os intelectuais do limiar do século XX eram dedicados a debater diversos aspectos da composição social do brasileiro. Música, esporte, racismo e diversos outros temas eram tratados por meio de polêmicas ardentes na imprensa. É preciso resgatar isto no Brasil, evidentemente com respeito e sem os excessos daquela época.

 

[1] VENTURA, R. Estilo Tropical. São Paulo: Cia das Letras, 1991, p. 79.

[2] Id., p. 145.

[3] PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. Footballmania: uma história social do futebol no Rio de Janeiro, 1902-1938. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.