TÚNEL DO TEMPO

A cafonice dos anos 1980 voltou? O que revela a capa da Vogue com Lauren Sánchez Bezos

Recém-casada com um dos homens mais ricos do mundo estampa a edição digital da “bíblia da moda” dias após o anúncio da saída de Anna Wintour do comando da revista

Créditos: Fotomontagem reprodução Instagram
Escrito en MODA E POLÍTICA el

A capa digital de junho da Vogue dos EUA, estrelada por Lauren Sánchez Bezos, recém-casada com o bilionário Jeff Bezos, desencadeou uma onda de críticas negativas na imprensa e nas redes sociais. 

Lançada justamente no fim de semana do casamento luxuoso em Veneza, a escolha editorial foi interpretada como descolada da realidade socioeconômica, em meio a protestos na cidade contra o turismo de massa e a ostentação de bilionários.

O timing da publicação coincidiu ainda com a saída de Anna Wintour do posto de editora-chefe da edição estadunidense — movimento que muitos leitores enxergaram como simbólico de uma perda de relevância editorial da revista, agora supostamente mais vulnerável a interesses de figuras ultrarricas.

A inspiração da noiva

Pinterest - Vestido de noiva de Sophia Loren inspirou Lauren Bezos.

Lauren, de 55 anos, contou à Vogue que buscava um vestido que “evocasse um momento” e fosse mais do que apenas uma peça de alta-costura. Para encontrar a referência ideal, ela mergulhou em pesquisas de imagens de noivas icônicas dos anos 1950, época marcada por silhuetas ajustadas, cintura marcada, saias volumosas e detalhes clássicos em renda.

No meio dessa imersão nostálgica, Lauren encontrou em Sophia Loren sua maior inspiração. Símbolo de sensualidade elegante do cinema italiano, Loren usava com frequência vestidos de renda fechados até o pescoço, combinando sensualidade contida com glamour atemporal. “Vi a Sophia Loren… ela usava renda alta, até o pescoço, e eu disse: ‘É isso. Esse é o vestido.’”, explicou Lauren.

O modelo escolhido, feito sob medida pela Dolce & Gabbana, seguiu essa linha: renda trabalhada, mangas longas e cauda dramática, reinterpretando o estilo vintage para um casamento bilionário em plena Veneza.

Acima de tudo, Lauren fez questão de que o look refletisse sua versão atual — mais confiante, segundo ela, após anos de terapia. “Fiz muita terapia e isso me mudou de várias formas. Mas é realmente o Jeff”, declarou, referindo-se ao marido. Segundo ela, o fundador da Amazon “me permite ser livre sem pedir desculpas”.

Até tu, Post?

Enquanto veículos de entretenimento e moda repercutiram as críticas, até o tradicional Washington Post — que pertence justamente a Jeff Bezos — abordou o tema, mas com um tom visivelmente mais cauteloso. 

A análise é assinada pela colunista do caderno Style do jornal, Rachel Tashjian, uma das críticas de moda mais influentes da imprensa dos EUA. No texto, ela mostra que Lauren não quis fazer o tradicional “glow-up” — termo usado para descrever a transformação de estilo e imagem que muita gente adota ao entrar para a alta sociedade global.

Em vez de se reinventar para agradar editores de moda, manteve o figurino de sempre: vestidos justos, fendas profundas, silhuetas tipo sereia e cabelo de pin-up vintage. O casamento em Veneza, recheado de nomes como Oprah Winfrey, Leonardo DiCaprio, Kardashians e Ivanka Trump, foi visto como um “espetáculo de ostentação”.

O texto destaca que, enquanto figuras como Kim Kardashian, Lady Gaga ou Brad Pitt moldaram a imagem para serem aceitos pela elite fashion, Lauren resiste a “disfarces de bom gosto”. Continua a escolher marcas como Dolce & Gabbana e Oscar de la Renta, conhecidas por não impor restrições de imagem a quem tem dinheiro.

No fim, o Post resume a contradição: enquanto se prega o “luxo silencioso” como ideal de sofisticação, Lauren Sánchez escancara o que é, na prática, o estilo de vida bilionário — e agora faz isso em uma capa da Vogue, dissecada, ironicamente, no jornal do próprio marido.

Choque de realidade

Para críticos, a capa da Vogue funciona como um sintoma: escancara o choque entre o glamour que a revista vende há décadas e as novas cobranças públicas sobre quem ocupa esse espaço de poder simbólico numa era de tensões sociais, concentração extrema de riqueza e desgaste de imagem dos super-ricos.

A escolha de Lauren Sánchez como rosto da edição digital vai além de um simples editorial de moda — expõe o dilema de marcas tradicionais, que precisam equilibrar relevância cultural, independência editorial e proximidade com elites econômicas num momento de vigilância cada vez mais intensa do público.

Cafonice dos anos 1980

A jornalista Katie Couric, veterana do Today Show, foi direta ao comentar o look da nova Sra. Bezos: chamou o visual de “tacky” (cafona) e declarou que “os anos 1980 estão de volta”, ironizando o retorno de uma estética marcada por ostentação sem cerimônia.

Couric reagiu especificamente ao vestido de noiva feito sob medida por Dolce & Gabbana, usado por Lauren no casamento do dia 27 — o mesmo modelo que estampa a polêmica capa digital da Vogue lançada logo após a cerimônia.

“Bem-vindos aos anos 80 — quando cabelo armado e consumo ostensivo reinavam”, escreveu Couric num comentário no Instagram de Jack Schlossberg, neto do ex-presidente John F. Kennedy, que havia publicado a imagem da capa. 

Na mesma linha sarcástica, Couric completou: “Aparentemente, o brega está de volta.” Schlossberg entrou na brincadeira e respondeu: “Vamos trazer os scrunchies de volta.” A postagem foi apagada e não está mais no ar nesta segunda-feira (30).

Reprodução Magazine Luiza - Scrunchies que foram moda nos anos 1980.

Scrunchies são aqueles elásticos de cabelo revestidos de tecido franzido, geralmente colorido ou estampado, que se tornaram um ícone da moda casual dos anos 1980 e 1990 — sinônimo de penteados volumosos, rabo de cavalo alto e estilo despojado. 

A partir desse raciocínio, Lauren mirou a década de 1950, mas acertou a década de 1980.

Revival: brilho, ostentação e poder

Ao associar o estilo de Lauren ao retorno à “cafonice dos anos 1980”, evocamos uma década que virou sinônimo de exagero visual e ostentação como status.

Fotomontagem Pinterest - Madonna, Princesa Diana e Joan Collins

Na moda, os anos 80 foram marcados por cabelos volumosos fixados com spray, maquiagem carregada, tecidos metálicos, brilhos, lurex, lamê, cores vibrantes, ombreiras gigantes e silhuetas imponentes. Grandes ícones, como Madonna, Princesa Diana, Joan Collins em Dynasty e executivas poderosas, ajudaram a popularizar esse visual dramático, misturando sensualidade e autoridade.

Wikipedia - Ronald Reagan incentivou o consumo de luxo.

Mas não foi só uma questão de gosto estético: a moda dos 80 refletia o clima sociopolítico e econômico do período. Nos Estados Unidos, a era Reaganomics incentivou o consumo de luxo, as marcas de grife ganharam status de “braço visível” do sucesso, e o culto aos yuppies (jovens profissionais urbanos, ambiciosos, bem pagos) consolidou o look “executivo glamouroso” — com terninhos, bolsas de marca e joias ostensivas. O capitalismo turboalimentado gerava ícones como os lobos de Wall Street — onde mostrar riqueza era quase uma obrigação.

Essa estética transbordava também na cultura pop: videoclipes da MTV, a febre do fitness (com polainas coloridas e bodies de ginástica) e filmes como The wolf of Wall Street (1987), que imortalizou o lema “Greed is good” (“A ganância é boa”).

Pinterest - Febre colorida do fitness
Wikipedia - Filme The wolf of Wall Street imortalizou o lema "a ganância é boa.

Retorno do excesso

Quase quatro décadas depois, o contexto é diferente — mas o retorno desse “espírito 80” revela muito sobre o momento atual. O luxo ostensivo voltou a ganhar palco justamente em um período de debate global sobre desigualdade, super-ricos e poder concentrado.

Depois de alguns anos de “quiet luxury” (o minimalismo discreto que virou moda após a pandemia, vendendo roupas caríssimas que parecem básicas), celebridades como Lauren Sánchez parecem apontar para o fim desse mito. Sai o look discreto e silencioso, entra de novo o brilho, os vestidos colados, as marcas que não têm medo de ser chamativas — Dolce & Gabbana, Oscar de la Renta — e a ostentação como narrativa de poder.

No fundo, é um ciclo que se repete: quando bilionários compram ilhas, fecham cidades para festas privadas (como no casamento em Veneza) e estampam capas com roupas que gritam “olhem para mim”, voltamos a uma linguagem visual que exibe privilégios sem filtro.

Enquanto uma parte do público questiona o papel dos ultra-ricos em crises ambientais, conflitos e concentração de renda, outra parte da cultura pop transforma o excesso performático em entretenimento sem pudores — exatamente como nos anos 80.

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