Anna Wintour anunciou nesta quinta-feira (26) que vai deixar o comando editorial da Vogue nos Estados Unidos, posto que ocupa desde 1988. É o fim de um ciclo histórico: foram quase quatro décadas moldando a revista mais influente da moda global — conhecida como a “bíblia da moda”.
Mesmo deixando o cargo operacional, Anna não se afasta da Vogue: permanece como diretora editorial global da marca e chefe de conteúdo da Condé Nast, grupo que publica revistas como Vanity Fair, GQ e The New Yorker. Na prática, continua mandando muito — agora com foco ainda maior na estratégia internacional.
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Hoje, aos 75 anos, Anna é considerada uma das figuras mais poderosas da história da moda. Sob sua liderança, a Vogue se tornou autoridade para lançar (ou derrubar) tendências, estilistas e modelos. Para se ter uma ideia, ela ajudou a arrecadar mais de US$ 300 milhões para o Costume Institute do Metropolitan Museum de Nova York — e em 2025, recebeu das mãos de Joe Biden a Medalha Presidencial da Liberdade, maior honraria civil dos EUA.
Capa de jeans, capas históricas
A fama de “transformadora” não é à toa. Na sua primeira capa, em novembro de 1988, Anna ousou: colocou a modelo israelense Michaela Bercu de calça jeans — algo impensável na época, quando a revista vivia de vestidos de gala e alta-costura pura. Era o recado de que a “era Wintour” mudaria tudo.
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De lá para cá, ela abriu as páginas da Vogue para fotos ao ar livre, cliques mais despojados e capas com nomes improváveis. Em 1992, fez história ao trazer um homem pela primeira vez: Richard Gere, fotografado com a então esposa, Cindy Crawford.
Quem fica com o trono?
Com a saída de Anna do dia a dia, começam as apostas sobre quem assume a cadeira mais poderosa da moda. Entre os nomes cotados estão:
- Amy Astley, editora-chefe da Architectural Digest.
- Chioma Nnadi, líder de conteúdo da British Vogue, famosa por inovação e força digital.
- Kate Betts, veterana do jornalismo de moda.
- Virginia Smith, ex-diretora de moda da Vogue US, vista como quem já conduz boa parte da operação.
Independentemente de quem herdar a função, Anna segue como o rosto — e a mão invisível — por trás de muitas decisões que moldam o mercado.
O Diabo Veste Prada: mito e realidade
Para o grande público, Wintour é lembrada como a inspiração real de Miranda Priestly, a lendária chefe de O Diabo Veste Prada (2003). O best-seller, escrito por Lauren Weisberger — ex-assistente de Anna —, virou filme em 2006 com Meryl Streep. O longa ajudou a fixar no imaginário popular a figura da editora fria, exigente, implacável — e sempre de óculos escuros.
Dizem que Anna até tentou dificultar a produção, barrando empréstimos de grifes para as filmagens. Mas compareceu à pré-estreia, alimentando a lenda da “rainha de gelo” da moda.
De Londres para o mundo
Nascida em 1949, filha do jornalista Charles Wintour, Anna começou cedo em Londres, passou por títulos como Harper’s & Queen e British Vogue, até se firmar em Nova York nos anos 70 e 80. Assumiu a Vogue US em 1988, quando a publicação enfrentava concorrência pesada da Elle. Sua primeira capa — jeans misturado com alta-costura — já mostrava que nada seria intocável.
Sob sua batuta, a revista virou um “manual visual” que une moda, celebridades, cultura pop, política e negócios. Foi pioneira em trazer estrelas de Hollywood para capas que antes eram território exclusivo de supermodelos. E ajudou a lançar estilistas como John Galliano, Alexander McQueen e Marc Jacobs quando eram apostas arriscadas.
Desde os anos 90, Anna também reinventou o Met Gala: transformou o baile do Metropolitan Museum no maior tapete vermelho do planeta, fonte milionária para o museu — e vitrine de influência para a própria Vogue.
Uma trajetória de poder — e contradições
Nem tudo são flores no legado de Anna. Funcionários e ex-colaboradores relatam que seu estilo de liderança é rígido, muitas vezes autoritário. A redação da Vogue sempre foi conhecida como um ambiente de pressão extrema e pouca abertura para contestar ordens.
Além disso, por muito tempo, a revista foi criticada por reforçar padrões de beleza restritos: magreza extrema, estética eurocêntrica, pouca diversidade real. Mudanças começaram a aparecer mais fortemente apenas nos últimos anos, após cobranças públicas e pressão interna.
Em 2020, durante o auge do Black Lives Matter, vieram à tona denúncias de racismo estrutural dentro da Condé Nast. Anna chegou a admitir que não fez o bastante para ampliar vozes negras na redação.
Capas polêmicas e embates icônicos
Wintour também virou sinônimo de capas ousadas (e controversas). Em 2014, estampou Kim Kardashian e Kanye West, grávidos, na Vogue US — uma capa que irritou a velha guarda da moda, mas vendeu como água. Em 2008, causou polêmica com LeBron James e Gisele Bündchen numa pose criticada por reforçar estereótipos racistas.
Nos bastidores, colecionou embates com gigantes: Karl Lagerfeld, Yves Saint Laurent e Alexander McQueen — com quem teve relação de amor e ódio, mas prestou tributo após sua morte no Met Gala.
Anna Wintour e a Casa Branca: proximidade seletiva e críticas afiadas
Além de ditar tendências, Anna Wintour sempre soube usar sua influência editorial para se posicionar politicamente — principalmente quando o assunto é a Casa Branca. Sua relação com presidentes e primeiras-damas dos EUA deixou claro que, para ela, moda e política sempre caminham juntas.
Um exemplo marcante foi o apoio direto a Hillary Clinton na eleição presidencial de 2016. Em outubro daquele ano, Wintour comandou a decisão editorial histórica: pela primeira vez, a Vogue declarou apoio oficial a um candidato — algo inédito desde a fundação da revista. Antes disso, Anna já havia organizado eventos de arrecadação de fundos e mobilizado designers e celebridades para impulsionar a campanha democrata.
Por outro lado, Wintour nunca escondeu seu desprezo por Donald Trump e pela família dele. Em abril de 2019, em entrevista à CNN, ela foi perguntada se a Vogue colocaria Melania Trump na capa, seguindo a tradição de retratar primeiras-damas. A resposta foi um recado velado: preferiu exaltar Michelle Obama e Jill Biden como mulheres que “representam valores diferentes”, deixando claro que Melania não se encaixava na imagem progressista que a revista queria passar.
A recusa gerou críticas de conservadores, que acusaram a Vogue de “boicote”, mas Anna não recuou. Ainda em 2019, em outra entrevista, reafirmou que Melania não fazia parte dos planos editoriais da publicação por não simbolizar a diversidade e a modernidade que ela queria associar à marca.
Mais que isso: Anna também baniu Trump do Met Gala, o baile beneficente que ela transformou no maior tapete vermelho do mundo. Em outubro de 2017, durante o programa The Late Late Show with James Corden, Wintour foi questionada sobre quem jamais voltaria a ser convidado para o evento. Sua resposta virou manchete: “Donald Trump” — encerrando qualquer possibilidade de aparição do atual presidente no evento depois de 2016.
Em outras falas públicas, como em novembro de 2017, durante um painel em Londres, Anna chamou o governo Trump de “um retrocesso terrível” para direitos civis, diversidade e representatividade — bandeiras que ela passou a exibir cada vez mais na narrativa editorial da Vogue.
Antes disso, Wintour já havia cultivado uma relação próxima com Michelle Obama, estampando a então primeira-dama em capas icônicas a partir de 2009, muito antes de ela se consolidar como fenômeno pop global — um gesto que misturava estratégia editorial e declaração política.
No fim, Anna Wintour transformou a Vogue em vitrine de tendências, mas também em palco de embates ideológicos. Para seus críticos, tudo isso é oportunismo editorial para vender uma imagem “antenada”. Para seus defensores, é a prova de que, sob sua batuta, a revista entendeu que moda, política e cultura pop nunca andam separadas — nem nos tapetes vermelhos, nem nas capas, nem na lista de convidados.
Pioneirismo ou oportunismo?
Sob Anna, a Vogue abraçou temas como feminismo, diversidade e pautas LGBTQIA+ — mas críticos apontam que isso sempre veio embalado num cálculo comercial preciso, sem arriscar o lucro. Para alguns, foi greenwashing e pinkwashing editorial; para outros, foi uma forma de manter a marca atual.
No fim, a Vogue de Wintour é o retrato de um setor que quer parecer moderno, engajado e diverso — mas segue vendendo desejo, exclusividade e status inalcançável.
Anna Wintour é um fenômeno: ao mesmo tempo ícone de poder, estrategista fria, mentora de talentos e guardiã de uma indústria que ainda lida com seus paradoxos. Mesmo fora da cadeira de editora-chefe da Vogue US, continua sendo o lembrete de que a moda vai muito além de roupas — é cultura, política, mercado e espetáculo. E coerência, nesse palco, quase nunca é prioridade.