França

Grande Medo: como um surto de pânico mudou a história da França

No calor sufocante do verão francês de 1789, enquanto a Revolução se iniciava em Paris com a queda da Bastilha, um surto de pânico tomou conta do interior da França e mudou a história do país

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Mestranda em Ciência Política e bacharel em Relações Econômicas Internacionais pela UFMG, já foi treinee de Ciência e Saúde da Folha de S. Paulo e escreve sobre Ciência e Tecnologia para a Revista Fórum. Tem interesse por temas de geopolítica e economia internacional.
Grande Medo: como um surto de pânico mudou a história da França
Castelos queimados nos dias que antecederam a votação da lei de privilégios, em 4 de agosto de 1789.. Pintura de época

No calor sufocante do verão francês de 1789, enquanto a Revolução se iniciava em Paris com a queda da Bastilha, um surto de pânico tomou conta do interior da França. O fenômeno, conhecido na história da França como "La Grande Peur" (O Grande Medo, em tradução livre), ficou marcado na história da revolução e da França como uma das centelhas da transformação política e social, apesar de ter sido baseado em rumores (e no medo generalizado de uma fome vindoura).

À época um país rural, com até 80% de sua população formada pelo campesinato, a França sofria de uma grave crise de abastecimento: o mau resultado das colheitas se somava ao aumento dos preços dos grãos e à pobreza já evidente da população.

As instabilidades políticas também cresciam. Foi em 1789 que os Estados Gerais franceses, convocados por Luís XVI, reuniram-se para discutir a crise financeira e política do país (dando início à Revolução Francesa). À medida que as tensões aumentavam em Paris e a Assembleia Nacional se consolidava como força política da revolução, o interior da França assistia ao colapso iminente de Luís XVI e se desesperava com a reação dos aristocratas à mudança profunda nas bases do poder.

Em julho daquele ano, com a destituição do ministro Jacques Necker, o ministro das finanças de Luís XVI, e o deslocamento de tropas em direção à capital, surgiu no país um boato, que logo se espalhou de maneira ampla, acerca de um suposto complô aristocrático para acabar com a revolução.

De acordo com o historiador francês Georges Lefebvre, o medo não surgiu de um movimento único, mas espalhou-se como uma série de rumores locais entre o fim de julho e o início de agosto.

Dickens já havia capturado esse fenômeno entre a população francesa no seu romance histórico sob o plano de fundo da Revolução: no Conto de Duas Cidades (1859), uma troca de correspondências e uma cadeia de pequenas alianças locais celebradas às escondidas (entre muitos homens chamados Jacques) formam um complô social motivado por justiça e vingança contra os nobres locais e seus excessos.

O Grande Medo acabou se tornando a mesma coisa: o temor rapidamente generalizado da fome e de ataques que "nunca vinham", compartilhado numa cadeia de rumores entre camponeses, pequenos proprietários e a população rural de modo geral, espalhavam a notícia de que bandidos e saqueadores à mercê da aristocracia viriam destruir as plantações, incendiar aldeias e espalhar o caos social.

O "complot aristocratique" (complô da aristocracia contra a população) foi invocado como desastre iminente entre a população francesa, e a tomada da Bastilha, em 14 de julho daquele ano, foi o prenúncio do caos anunciado.

"Notícias confusas e exageradas chegavam ao campo lentamente, alimentando a desconfiança, o medo e a reação defensiva das pessoas", diz o historiador Timothy Tackett.

No norte da França, rumores falsos de que bandidos destruíam os campos de trigo traziam o desespero diante de uma temporada de fome mortal; e, no sul, em lugares em que a colheita já havia sido feita, os boatos eram de que os "brigands" viriam atacar as próprias pessoas e suas casas. Aliás, de acordo com a região, a natureza dos brigands também variava: podiam ser os ingleses, os espanhóis, os mouros e outras figuras associadas ao poder do Antigo Regime.

Milícias de proteção popular foram formadas em diversas localidades e, em certo ponto, o medo infundado dos ataques começou a motivar, ele mesmo, o ataque de rechaço dos populares às residências e aos castelos de senhores locais, numa onda de revolta contra a aristocracia.

Embora tenha sido um fenômeno coletivo predominantemente psicológico, o grande pânico e os ataques que se seguiram do terror do Grande Medo foram acontecimentos importantes para a Assembleia Nacional Constituinte da França, que interpretou a situação como sinais da revolta generalizada da população contra o sistema feudal.

Em 4 de agosto de 1789, então, os políticos decretaram a abolição oficial dos privilégios feudais, um dos marcos da queda do Antigo Regime.

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