RAFAEL CAMPOS ROCHA
Fui uma das dezenas de milhares de pessoas que ficaram constrangidas às lágrimas com a patuscada do eterno candidato Ciro Gomes e o humorista Gregório Duvivier, em um agora célebre debate no youtube.
Como muitos, comecei a assistir o debate me divertindo com a retórica rasa e míope de ambos os debatedores. Entretanto, ao perder terreno para a língua afiada, a ironia e o deboche, devidamente lapidados por anos de profissão, de Duvivier, Ciro, como já visto inúmeras vezes, perdeu a compostura e começou a esbravejar e agredir o seu oponente no debate, tentando a todo momento desqualificá-lo e humillhá-lo com interrupções grosseiras, as bravatas de sempre e os arroubos emocionais infantis, cada vez mais frequentes.
O cirismo nasce do medo da classe média das chamadas classes populares, que eles identificam tanto com o bolsonarismo quanto com o petismo. Uma espécie de barricada contra o que eles consideram mau gosto, contra o seu inegável mau gosto de classe média
A diversão dos primeiros minutos transformou-se em constrangimento, depois em desagrado e, ao final, em depressão. Todo mundo conhece um super-hétero da retórica política, alguém que destrói qualquer evento social de pequeno porte –da mesa de bar à roda de conversa na festa– por ser incapaz de enxergar os acordos comportamentais tácitos nos agrupamentos mais singelos. Mais preocupado em angariar atenção feminina e conseguir precavidos e temerosos apoiadores masculinos, humilhando seus supostos adversários no campo da testosterona, do que participar da comunhão entre seus pares. Um moisés do debate informal, que separa a festa e espanta os convivas como o líder hebreu fez com o Mar Vermelho. Empunhando o cajado e tudo.
Ao enxergar em Ciro um gladiador da própria masculinidade, sem outra causa que não a busca de um trono vago qualquer para empilhar os corpos dos vencidos, inconformado com a passagem do tempo, que varre impérios e reputações como quem varre a varanda de um casebre, não pude deixar de pensar no tempo que eu mesmo havia perdido em disputas parecidas –e quem não as viveu?– e escrevi, entristecido, as linhas a seguir no facebook.
O Ciro pode ser inteligente, mas é espantosamente tolo. De uma tolice profunda e que reverbera pelos seus acólitos. Sua falta de sabedoria denota uma infância protegida e aquela sensação de predestinação que encontramos nas pessoas mais medíocres e prepotentes. Somente um tolo discute com um humorista, porque contra o Humor não há argumentos. Sócrates era vítima do excelente As Nuvens de Aristófanes, e Platão colocou em sua boca que "as musas da inteligência fizeram morada" em seu adversário humorista. As únicas formas de contradizer um humorista são pela piada genial ou comprando-o. Ou pela violência. Ciro quis violentar Gregório pela sua evidente superioridade política, tentando humilhá-lo. Só que os humoristas lidam com a auto-imolação, a auto-humilhação o tempo inteiro. É seu material de trabalho. O candidato a candidato da terceira via transformou sua campanha em auto-congratulação de sua inteligência para seus seguidores, que se sentem tão predestinados quanto ele. Deve ter sido o quadro de humor mais triste que vi na vida. De uma tristeza abissal, da lama primordial do pensamento classe média semi-ilustrado brasileiro. Uma tragédia.
As únicas formas de contradizer um humorista são pela piada genial ou comprando-o. Ou pela violência. Ciro quis violentar Gregório pela sua evidente superioridade política, tentando humilhá-lo. Só que os humoristas lidam com a auto-humilhação o tempo inteiro. É seu material de trabalho
A resposta veio no cavalo da internet, com uma série de sub-ciros, ou de ciros-verdadeiros, esbravejando contra o meu texto, contra o meu esnobismo ao citar Platão “em um país passando fome” e outras estultices, além das denúncias e bloqueios de sempre. Toda vez que alguma postagem minha escapa do escopo dos meus amigos próximos e leitores habituais, essas punições acontecem.
Os comentários dos ciristas nas imagens agora banidas e na minha infeliz caixa de diálogos privados me fez pensar mais uma vez nesse estranho fenômeno do cirismo, que se transforma ao longo dos meses e anos, sem perder, é fato, a sua quintessência. O cirismo nasce do medo da classe média das chamadas classes populares, que eles identificam tanto com o bolsonarismo quanto com o petismo. Uma espécie de barricada contra o que eles consideram mau gosto, contra o seu inegável mau gosto de classe média com informação às médias, formação espiritual sem o alicerce de seu próprio povo (que ela renega) e reflexão medíocre sobre a sua própria condição.
A buchada de bode e o sanduíche de mortadela contra os almoços intragáveis de redes de “hamburgueria” e outras comidas populares afastadas da população somente pelo preço. O forró de Jackson do Pandeiro e a potência do funk carioca contras as tristes ladainhas “pop” importadas por jornalistas que compraram o middlebrow estadunidense e europeu como quem compra de volta a alma do demônio.
Ciro pode ser inteligente, mas é espantosamente tolo. Sua falta de sabedoria denota uma infância protegida e aquela sensação de predestinação que encontramos nas pessoas mais medíocres e prepotentes. Somente um tolo discute com um humorista, porque contra o Humor não há argumentos
Mas, mais importante que o medo da máscara de Caliban do gosto popular, os ciristas têm um medo profundo, arraigado, da revolta definitiva dos excluídos, e de serem catapultadas de sua cada vez mais frágil plataforma social. Os ciristas e a classe média, da qual são os bravos representantes, pressentem o desprezo dos ricos por suas diminutas conquistas, cujo valor é medido pela desapropriação das classes mais pobres, e o ódio dessas classes à sua injustificável soberba de classe de quem, afinal, ainda vive do suor do próprio rosto. Sua tão desejada identificação com os ricos só aconteceria em uma revolta e desapropriação em larga escala, ou seja, em sua desgraça, e por isso eles se entricheiram em uma figura principalmente reacionária e reativa, o próprio Ciro Gomes.
A acusação de irmandade ideológica entre o bolsonarismo e o petismo, partindo dos ciristas, é mais uma generalização paupérrima, baseada em seu esnobismo de classe. O bolsonarismo nasce da mesma classe média acuada que o cirismo, só que, diferentemente do segundo, espraiou-se pelas camadas populares menos informadas. O petismo nasce da classe trabalhadora, inclusive de sua religiosidade, e tomou o poder por meio da colaboração de intelectuais de ponta e do carisma e genialidade de seu líder máximo, Lula.
Seus eleitores são comuns, é claro, porque o humano nunca há de ser tão diferente um do outro, e se encontram em seus extremos; a população pobre e desinformada. É esse o campo de disputa e é essa a aposta. Ao ser simplesmente ignorado pelos dois protagonistas maiores das eleições, Bolsonaro e Lula, a fúria masculina de Ciro sobe a níveis estratosféricos, porque ele e seu staff confiam na sua superioridade intelectual sobre qualquer um dos dois. Como um aspirante a campeão de boxe, Ciro vai tentando se aproximar do pódio máximo por meio de adversários menores, em lutas frívolas onde os resultados são sempre subjetivos, quando não duvidosos.
Ciro mira em Lula como os adolescentes e meninos pequenos comparam-se e competem com o pai distante, misericordioso porém atado aos papéis sociais tradicionais. Fiquei triste quando vi Ciro aos berros com o humorista porque vi em Ciro um menino em busca de amor
Mas Ciro não quer tomar o lugar de Bolsonaro, um líder muito mais temido, inclusive por seus filhos e assessores próximos, do que amado. Ciro mira em Lula como os adolescentes e meninos pequenos comparam-se e competem com o pai distante, misericordioso porém atado aos papéis sociais tradicionais. Os meninos, também atados às cadeias da hereditariedade e de sua própria inclusão social, começam a batalha para sua própria transformação nesse fantasma de Pai, contra outros meninos, olhando para os degraus de seus vizinhos com muito mais devoção do que olham para as próprias pegadas.
Por isso fiquei triste quando vi Ciro aos berros com o humorista, evidentemente arrependido de ter se candidatado a uma peleja onde não ganharia nada a não ser ofensas. Não porque vi um político que, apesar de experiente, se mostra incapaz de olhar para o país à sua volta e suas necessidades e urgências. Mas porque vi em Ciro um menino em busca de amor, como eu, você e tantos outros. Uma criança que tentava conseguir esse amor de seu pai distante, tradicional, de seu Fantasma de Pai, enquanto estava na cozinha, com as mulheres Tradicionais, porque ainda era uma Criança.
Para se fazer ouvir, e talvez ser amado, você se candidatava a esse amor desconhecido aos berros, aos gritos, sapateando no chão frio, porque ainda confundia o amor com atenção, com constrangimento, até mesmo com ódio e temor, e o máximo que conseguia eram as palmadas da Mãe Tradicional Furiosa. Do pai, nem isso. O Pai estava na sala, com as visitas, entre risadas e charutos. Sua voz rouca ouvida ao longe, apreendida com respeito, pelos outros adultos.
Rafael Campos Rocha é quadrinista, autor de Deus Essa Gostosa e Kriança Índia