OPINIÃO

Quando um não quer, dois não brigam? (Ou: o mito da polarização política no Brasil)

Se a História nos ensina alguma coisa, ela nos faz ter o palpite de que a direita, quase toda, continuará a sua marcha, cada vez mais radicalizada

Créditos: Domínio Público
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Foi bom o Carnaval? Espero que você tenha descansado. Pois então, voltemos à nossa conversa sobre os dilemas da esquerda e seus desafios para 2026 e além.

Noutro dia eu participava de uma discussão com experientes consultores políticos (ou “marqueteiros”, como os profissionais dessa área, como eu, costumam ser chamados no Brasil), colegas meus do CAMP, que é a associação brasileira que congrega esse pessoal. O tema da conversa era: quais as vantagens e desvantagens de se fazer pesquisas de opinião pública usando meios presenciais e/ou digitais?

Lá para as tantas, um dos decanos da comunicação política brasileira comentou que uma das coisas que mais atrapalha hoje em dia a aferição da opinião das pessoas é a “radicalização política”, que teria chegado ao ponto em que muitos eleitores – em geral votantes da direita - não respondem aos pesquisadores que os abordam porque não acreditam em pesquisas. Acham que elas já vêm viciadas de origem. Naquele ponto da discussão a minha cabeça fugiu do debate principal e se fixou na expressão: “radicalização política.”

Existirá mesmo uma radicalização na política brasileira? A direita e a esquerda estão proporcionalmente “putos,” um com o outro? Estão esses atores políticos imbuídos de uma vontade mútua de, como acontece nos reais momentos de radicalização, voar nos pescoços, uns dos outros, com desejo assassino (real ou metafórico), como se fossem duas torcidas organizadas tentando se matar no estádio do Morumbi?

Então me veio à mente que o que temos na política brasileira atual não é uma ‘radicalização política’ de fato. O que temos é: cerca de um terço do eleitorado e dos agentes políticos nacionais, situados na direita, estão sedentos de sangue e querem exterminar (de novo, real ou metaforicamente) qualquer um que não pense como ele e não comungue de seus valores; em especial, exterminar o pessoal da esquerda.

Esses radicais conservadores são brasileiros e brasileiras que acham que é normal e válido, para atingir os seus desejos políticos, fazer coisas como derrubar a república, matar o presidente eleito e seu vice-presidente e passar em armas um dos ministros do STF. São pessoas - muitas vezes escondidas sob faces amigáveis, comuns, cotidianas – que estão de fato radicalizadas, a ponto de invadir, fazendo quebra-quebra, as sedes dos poderes republicanos, como aconteceu em janeiro de 2023.

Não consigo ver membros da esquerda agindo de modo análogo, atacando furiosamente seus inimigos. Não há, então, uma “polarização política” porque não temos do outro lado da disputa pelo poder, no campo de esquerda, a mesma vontade assassina, violenta, de eliminar os que lhe são diferentes.

Não existe uma polarização, pois não há polarização quando só um dos “polos” usa a violência como arma política. Mesmo assim, a chamada grande mídia, muitos cientistas políticos e vários líderes de esquerda, falam o tempo todo em “polarização política”.  O que temos, então, se não há uma “polarização”?

Temos uma “radicalização assimétrica”: enquanto um lado se prepara para o tudo-ou-nada, para ir às vias de fato, o outro lado continua, na prática, fazendo o jogo do “deixa disso, somos todos irmãos.”

A expressão “radicalização assimétrica” foi bastante usada nos EUA depois da vitória de Barack Obama numa tentativa de explicar o crescente rancor e ressentimento que tomaram conta de parte significativa do eleitorado conservador, de pessoas que não aceitavam, e não aceitaram, um negro na presidência.  Para uma parcela grande do eleitorado WASP (Branco Anglo-Saxão Protestante) e uma parte não insignificante de negros e hispânicos, começou ali a busca por um salvador e por uma ideologia que lhes desse razão. Ter um negro “mandando” no país – e neles próprios, por consequência – era afrontoso. Algo tinha que ser feito.

Começou ali, nessa radicalização assimétrica – pois esse rancor era respondido pelos democratas com tentativas de apaziguamento, com “paz e amor, brother”, - o trumpismo e outras aberrações, como a teoria conspirativa QAnon, que é seguida por milhões de pessoas que nela acreditam profundamente.

Para você entender a gravidade do fato: a QAnon afirma que os EUA são secretamente governados por bilionários democratas, que são ao mesmo tempo pedófilos e satanistas bebedores de sangue, dos quais apenas Trump poderá livrar o país.  Não ria. Vá no Google, eu não estou inventando. A coisa é séria e, creio, ainda não chegou com força total ao Brasil.

O meu raro leitor e rara leitora podem estar pensando: mas que importância tem isso? Que importa se chamamos de “polarização política” ou de “radicalização assimétrica”? Eu digo que importa muito. As próximas décadas da vida nacional vão depender de como os setores democráticos conservadores e a esquerda compreenderão essa situação e se comportarão em relação a ela.

Por enquanto, a direita democrática tem agido como se isso não lhe dissesse respeito. E a esquerda tem agido como se fosse a guardiã e salvadora dos valores da República: embora proteste nas redes sociais, continua elegantemente estendendo a mão e trabalhando com os ingredientes da normalidade democrática.

Os esquerdistas parecem estar à espera de que a tempestade da insensatez passe, e seus adversários acordem do pesadelo em que vivem, e que tudo volte a ser como era, antes de 2013. Só essa visão das coisas parece explicar a opção por lutar com as armas do jogo democrático de tempos atrás, como tem feito até agora.

Bem, isso não acontecerá. O carnaval passou, mas não haverá volta à sensatez. Quem apostar no ditado que diz que “quando um não quer, dois não brigam” estará pondo em risco não só a Democracia, mas também seus próprios anéis  e dedos.

Se a História nos ensina alguma coisa, ela nos faz ter o palpite de que a direita, quase toda, continuará a sua marcha, cada vez mais radicalizada. Como já vimos em outros momentos da história (vem à mente o óbvio paralelo com a radicalização assimétrica dos nazistas – graúdos ou simples donos de quitanda - na Alemanha da República de Weimar, entre 1919 e 1933, forçando violentamente as portas do poder, enquanto seus adversários comunistas, sociais-democratas e afins assistiam incrédulos.

Quando um não quer, o outro que se preparou para a briga ganha a luta.

Até a próxima coluna.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.

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