Ordem, progresso e um povo inteiro gripado
No Brasil de hoje, onde cada alma caminha pelas ruas com o nariz escorrendo e a garganta arranhando, assistimos a um espetáculo antropológico único
Há verdades universais que mesmo o mais obtuso dos observadores não pode ignorar, e uma delas é esta: quando um povo inteiro está gripado, ao mesmo tempo, revela-se com clareza a sua natureza. No Brasil de hoje, onde cada alma caminha pelas ruas com o nariz escorrendo e a garganta arranhando, assistimos a um espetáculo antropológico único.
O brasileiro transforma-se em algo extraordinário quando acometido pelo vírus da influenza. Observe-o: antes orgulhoso de sua capacidade de improvisação, agora se arrasta pelas calçadas feito um derrotado, carregando o peso de quem descobriu que nem mesmo o jeitinho brasileiro funciona contra os micróbios oportunistas.
As farmácias tornaram-se verdadeiros campos de batalha onde gladiadores disputam o último frasco de xarope Melagrião. Ali, democraticamente reunidos, estão o deputado, o engraxate, a socialite e o operário, todos reduzidos à condição de mamíferos febris em busca de alívio. A gripe conseguiu o que séculos de discursos políticos não alcançaram: tornar todos os brasileiros iguais.
Mas é na esfera do trabalho que o fenômeno atinge sua expressão mais cômica. Os escritórios do país agora são sanatórios improvisados, onde executivos de terno e gravata tentam manter a dignidade profissional enquanto assoam o nariz em guardanapos de fast-food. As videoconferências ganharam uma trilha sonora de fungadas e pedidos de desculpas. "Peço perdão a todos, estava no mudo" tornou-se o refrão nacional, seguido por uma sinfonia de chiados respiratórios.
Enquanto ministros resfriados anunciam planos para combater a epidemia, suas próprias vozes roucas traem a inutilidade dos esforços. Comissões especiais são formadas, compostas por funcionários públicos que mal conseguem ficar em pé, debatendo protocolos sanitários entre picos de febre. A burocracia brasileira, já lenta em tempos normais, agora opera no ritmo de uma lesma com pneumonia.
Nas ruas, o brasileiro gripado revelou uma nova faceta de sua personalidade: a solidariedade patológica. Estranhos se cumprimentam escarrando, numa espécie de código morse pulmonar que diz: "Eu também estou ferrado, companheiro." Filas de PS viram grupos de apoio, onde receitas caseiras são trocadas com o fervor de segredos de Estado. "Chá de gengibre com mel", sussurra uma senhora idosa, e todos ao redor a reverenciam como se ela houvesse revelado a fórmula da pedra filosofal.
A vida cultural do país, sempre tão vibrante, adaptou-se à nova realidade com criatividade. Shows e peças são realizados com plateias que mais parecem um pavilhão de tuberculosos, onde aplausos são entrecortados por acessos de espirros coletivos.
E assim, enquanto o país inteiro tosse, estila e se lamenta, uma verdade emerge: o brasileiro, mesmo encatarrado, permanece otimista. Nas esquinas, entre fungadas, ainda se ouvem risos; nos bares, repletos de mascarados, ainda se contam piadas. A gripe pode ter conquistado nossos corpos, mas não conseguiu derrotar aquilo que há de mais primordial no espírito brasileiro: a capacidade de encontrar humor mesmo na maior das dores no corpo.
Ainda bem, porque quando essa epidemia passar, logo virá a próxima cepa.