O caso de Igor Melo Carvalho, baleado por um policial militar reformado na Penha e posteriormente preso injustamente junto ao mototaxista Tiago Gonçalves, revela mais um aspecto preocupante do sistema de justiça brasileiro: a facilidade com que a palavra de um policial, mesmo cercada de contradições, pode servir como único fundamento para prisões. Este não é um fato isolado; pelo contrário, reflete uma prática recorrente, que desafia princípios básicos do direito penal e garantias constitucionais.
A situação de Igor e Tiago chama atenção especialmente porque a prisão deles ocorreu sem a existência de provas concretas. O policial reformado Carlos Alberto de Jesus e sua esposa, Joselene da Silva Souza, mudaram seus depoimentos ao longo do tempo. Inicialmente, alegaram que Igor estava armado; posteriormente, negaram terem visto qualquer arma. No entanto, mesmo diante dessas inconsistências, a palavra deles foi suficiente para que a polícia determinasse a prisão de Igor e Tiago. A ausência de uma investigação preliminar minimamente criteriosa resultou na detenção de duas vítimas da violência e não de criminosos.
Te podría interesar
A situação poderia ter sido evitada se a autoridade policial tivesse seguido corretamente os princípios estabelecidos na Súmula 70 do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), que impede condenações baseadas exclusivamente em depoimentos policiais. Apesar de a súmula se aplicar específica e diretamente à fase processual, espera-se que as delegacias e policiais observem tal entendimento desde o início da investigação. A gravidade do ocorrido é evidente: um reconhecimento não fundamentado por outras provas é insuficiente para qualquer medida privativa de liberdade. Como é possível levar a sério um reconhecimento de indivíduos com capacetes, apenas por vestuário ou porte físico? Seria um método válido para determinar a privação de liberdade de alguém?
A prática de prender indivíduos apenas com base em reconhecimento fotográfico já foi rechaçada pelo Superior Tribunal de Justiça. No entanto, mesmo diante desse entendimento, polícias civis e militares seguem adotando esse procedimento questionável, com impactos devastadores na vida de inocentes. O caso de Igor expõe esse problema de maneira brutal: um trabalhador baleado pelas costas, hospitalizado em estado grave, e que, mesmo assim, foi encarcerado sem provas. O absurdo atinge proporções ainda maiores quando se constata que seria fácil verificar sua inocência. Igor estava trabalhando no momento em que o crime supostamente ocorreu, algo que poderia ser comprovado com registros formais. O mesmo ocorre com Tiago, que estava em serviço como mototaxista por meio de um aplicativo, cujo histórico de viagens poderia ser rapidamente consultado. Entretanto, esses elementos de prova não foram considerados antes da decisão de prendê-los.
Te podría interesar
A discussão é mais ampla do que o caso específico de Igor. O Brasil possui um histórico preocupante de prisões arbitrárias, muitas delas motivadas por critérios subjetivos e preconceituosos. Jovens negros e moradores de periferia são as vítimas mais frequentes desse tipo de erro. A palavra do policial é, muitas vezes, tomada como verdade absoluta, dispensando-se qualquer investigação mais rigorosa. A mudança desse quadro passa por reformas estruturais no sistema de segurança pública, investindo em formação mais criteriosa para delegados e policiais, garantindo que os princípios do direito penal sejam respeitados desde a primeira abordagem.
O caso de Igor ainda aguarda desdobramentos, e a Corregedoria da PM investiga a conduta do policial reformado. Existe a possibilidade de sanções administrativas, incluindo a perda do porte de arma e a exclusão dos quadros da corporação. No entanto, a maior preocupação da família e dos amigos de Igor, neste momento, é sua saúde. Ele sofreu lesões gravíssimas, perdeu um rim, teve danos no estômago e no intestino, e agora enfrentará uma longa e difícil recuperação. Diante de tanto sofrimento, a indignação se justifica: enquanto Igor luta para sobreviver, aqueles que o vitimaram continuam em liberdade.
Que esse caso sirva como um alerta. A justiça não pode continuar funcionando de maneira tão precária, tomando decisões baseadas em pressuposições e não em provas concretas. Para evitar que outras pessoas passem pelo mesmo, é urgente que as instituições do Estado garantam investigações mais rigorosas e respeitosas aos direitos fundamentais. No caso de Igor, o Estado falhou. Que essa injustiça não se repita, e que as autoridades aprendam com esse erro para garantir que ninguém mais sofra tamanha arbitrariedade.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum