“O café é a droga excitante mais consumida no mundo”, explica o historiador Henrique Carneiro. Mas sempre houve uma diferença em relação a como as classes sociais consomem tal produto.
Desde a “revolução psicoativa” iniciada no século XVII, o café, ao lado do chocolate e do chá, se tornou, na Europa, tanto “mania entre as cortes” quanto “vedete que animava os debates intelectuais dos filósofos iluministas”.[1]
Os cafés fomentaram o conceito de “opinião pública”. Nestes locais se debatiam inúmeras ideias, “tanto que muitos jornais nasceram em cafés”. “A sociedade contemporânea é literalmente movida à cafeína desde o despertar que chamamos café da manhã”.[2]
No Brasil, durante o século XIX, ele era consumido entre as elites acompanhando o pão com manteiga, hoje um alimento comum aos brasileiros, mas à época era “uma iguaria consumida somente pelos que podiam pagar o alto preço do trigo e da manteiga importada”.[3]
Enquanto que, na Europa, o café impulsionou as ideias burguesas que levaram à revolução francesa, no Brasil alimentou as elites econômicas que controlaram o Império e a Primeira República. Dos barões do café, que interferiram diretamente na comissão de verificação do resultado das eleições, a Getúlio Vargas, que “foi forçado a adotar medidas de proteção aos produtores de café, que enfrentavam uma grave crise econômica, [...] causada pela redução drástica da demanda pelo produto brasileiro”.[4] A medida consistia na queima de cerca de 80 milhões de sacas de café.
Se o café serviu para estimular as ideias liberais entre os nobres, o mesmo produto era útil para estimular os operários ao trabalho. De acordo com o economista Sérgio Bessermam Vianna, “o café foi a primeira produção voltada para o mercado de massa global, destinando-se à massa trabalhadora que acabara de surgir”.[5]
“Reza a lenda que um pastor de cabras da Etiópia observou o efeito excitante que as folhas e os frutos de determinado arbusto produziam em seu rebanho. Os animais que mastigavam a planta subiam as montanhas com agilidade e apresentavam mais resistência”.[6] Passaram-se centenas de anos e se percebeu a utilidade do café para o andamento da Revolução Industrial.
Eric Wolf mostra que “se sugeriu que estes estimulantes [chá, café e chocolate] da era industrial foram preferidos porque proporcionavam energia imediata em um período em que se pediu ao corpo humano um desempenho mais intenso e prolongado”.[7] Assim, a cafeína se tornou, “na frente do álcool e da nicotina do tabaco, a droga mais usada no mundo”.[8]
Já no Brasil, “a crescente participação do café na economia e a necessidade da mão de obra escrava para derrubar floresta, plantar as mudas e fazer a colheita, dificultaram a implementação da Lei Feijó” que declarava que “todos os escravos, que entrarem no território ou portos do Brasil, vindos de fora, ficam livres”.[9]
A grande fazenda com centenas de trabalhadores escravos simbolizou o auge do poder dos cafeicultores. Tanto que o senador Silveira Martins, em 1888, em discurso contra a Abolição, declarou que “O Brasil é o café e o café é o negro”.[10]
Com fim da escravidão, os cafeicultores recorreram à “força de trabalho do imigrante, muito mais barata que a do escravo, sob forma de trabalhador livre”, um trabalho ainda precário e, em muitos casos, desumano.
Sendo assim, o café foi uma bebida que estimulou a luta pela liberdade e o aumento da riqueza para as elites, enquanto que para os operários e escravos estimulou trabalho e sobretrabalho. Hoje, com o preço atingindo a maior alta histórica, continua a estimular a riqueza dos ricos, principalmente do agronegócio, que manipula o preço do mercado.
De acordo com o economista Edmar Bacha, um liberal que participou da equipe que criou o Plano Real, “graças ao fim do Instituto Brasileiro do Café (IBC) no governo Collor, o mercado foi desregulamentado e o Brasil virou um supermercado de café, que antes sempre teve uma indústria com enorme intervenção estatal”.[11] Ou seja, hoje o governo federal não pode intervir no preço (embora, devido à inexistência na história do Brasil de um governo realmente popular, quando intervia era em prol dos cafeicultores!), pois se acredita que o próprio mercado deve encontrar soluções para o problema. Por isso, antes de colocar a culpa no governo, é preciso criticar a lógica liberal da economia que não se importa com as consequências sociais, já que coloca o lucro acima de tudo, e entende que “qualquer uso do Estado que não seja para enriquecer uma meia dúzia deve ser evitado”.[12]
Mas a indignação popular é evidente em todo lugar e fomentada pela extrema direita, grande defensora do neoliberalismo. Além disso, o café é a droga (ao lado do açúcar) mais consumida pelos setores evangélicos, grupo que tem seu protagonismo político cada vez maior e que serve de base para o bolsonarismo.[13]
Como não há ninguém para explicar às classes populares que os verdadeiros culpados pelo aumento do preço dos alimentos é o desejo voraz do mercado pelo lucro e que é “proibida” qualquer intervenção estatal para amenizar tal valor, o povo coloca a culpa no presidente Lula. Mas como os trabalhadores explorados e humilhados poderiam saber a causa de seu infortúnio? “Como a elite econômica controla todos os meios de comunicação de massas, então essa possibilidade é tornada impossível”.[14]
Não adiantará a alteração de partidos ou presidentes no poder e, mesmo se o Congresso for totalmente reformado, dificilmente haveria alguma mudança em relação aos preços. Enquanto a vontade do mercado for superior à vontade popular, a democracia continuará sendo uma farsa e o povo sofrerá as consequências da ganância dos poderosos.
[1] RODRIGO, E. A vida ao redor de uma xícara. In: RHBN, ano 10, n. 115, abril. 2015, p. 29.
[2] CARNEIRO, H. Drogas: a história do proibicionismo. São Paulo: Autonomia Literária, 2018, p. 374.
[3] MONTELEONE, J. Estimulante social. In: RHBN, ano 5, n 57, jun, 2010, p. 30.
[4] RODRIGO, E. Do cafezal ao cafezinho. In: RHBN, ano 5, n 57, jun, 2010, p. 27.
[5] Doce ou amargo? In: RHBN, ano 5, n 57, jun, 2010, p. 34.
[6] MARTINS, A. L. Elixir do mundo moderno. In: RHBN, ano 5, n 57, jun, 2010, p. 20.
[7] Apud CARNEIRO, H. p. 361.
[8] Id., p. 374.
[9] GUIMARÃES, C. G. O café e a conta. In: RHBN, ano 5, n 57, jun, 2010, p. 25.
[10] Id., p. 26.
[11] Doce ou amargo?, p. 35.
[12] SOUZA, J. O pobre de direita. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2024, p. 198.
[13] Id., p. 183.
[14] Id., p. 201.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.