DENNIS DE OLIVEIRA

Silvio Santos gerenciou o baú da felicidade da ditadura militar

Se há alguma "competência" em Silvio Santos foi aproveitar este momento e construir um bem-sucedido plano de negócios adequado a um momento autoritário e violento vendendo lenitivos aos domingos por meio do principal canal comunicativo construído com este objetivo: a televisão

O apresentador Silvio Santos.Créditos: Paulo Cerciari/Folhapress
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Silvio Santos foi um símbolo do projeto cultural autoritário imposto pela ditadura militar 1964/85. Projeto este que buscava uma "integração nacional" com dois objetivos que se complementam: ideológico e econômico. É incorreto, como afirma Renato Ortiz em "A moderna tradição brasileira" (Brasiliense, 1988), que a ditadura militar não tinha um projeto de ação cultural. Tinha. Implicava tanto em reprimir brutalmente expoentes das artes e cultura cujas narrativas contrapunham a ideologia da ditadura (daí a perseguição, repressão e exilio forçado de várias celebridades artísticas da MPB, cinema, teatro e tantos outros oriundos da efervescência cultural dos anos 1960) como em investir em uma narrativa cultural voltada a imagem de um país grande, próspero, pacífico e feliz. Ortiz lembra das várias agências estatais culturais criadas ou fortalecidas na ditadura, como a Embrafilme, Inacen, Câmara Brasileira do Livro. Mas o grande carro chefe foi o investimento na disseminação da cultura de massas via a televisão que, graças aos investimentos da estatal Embratel, passou a ter transmissão em rede nacional e, para isto, a Rede Globo foi a emissora que liderou este processo.

O programa Silvio Santos começou na TV Paulista (que depois foi vendida para Globo) em 1963 e já em 1969 começou a ser transmitido em cadeia nacional. O papel que este produto televisivo cumpriu na construção da ideologia nacional foi de grande importância. As grandes obras faraônicas da ditadura que simbolizam o Brasil grande e próspero mascaravam a brutal exploração da classe trabalhadora submetida a um processo forçado e intenso de migração para as zonas urbanas e impedida a sua forma de organização com a repressão ao movimento sindical. Esta exploração encontrava um lenitivo aos domingos com o pão e circo do Programa Silvio Santos com os seus quadros de premiações gordas em verdadeiros videocassinos, ou pequenas com distribuições de pequenos bônus aos participantes no auditório, possibilidades de ganhos em mercadorias com os carnês do Baú da Felicidade, sem contar o intenso merchandising no decorrer do programa. Os carnês do Baú, os prêmios em mercadorias, os pequenos prêmios no auditório e a intensa propaganda das suas lojas Tamakavy, os "fusquinhas" zero da Vimave (concessionária da VW), além de outras lojas anunciantes.

Aqui, o programa cumpria o papel da integração da sociedade na perspectiva do consumo, eclipsando qualquer discussão no sentido da cidadania reprimida pela ditadura, O quadro político quando aparecia era ufanista, com a Semana do Presidente. Silvio Santos transformou em símbolos o sonho de Brasil-potência em "Porta da Esperança" e no desejo de ser um grande cantor no "Show de Calouros" ou ser rico pelos vários quadros do seu programa com prêmios milionários

Cumprido este papel, Silvio Santos ganha o seu presente, uma concessão de canal de TV que rapidamente se transforma em uma rede nacional que em determinados momentos chega a disputar a liderança de audiência com a poderosa Globo, embora sem nunca ameaçá-la do ponto de vista do poder econômico. Porém, já em tempos de vigência da democracia institucional, aposta no sensacionalismo mais bizarro para conquistar fatias de um público que não vivia mais sob os discursos do ufanismo ditatorial, mas ainda ressentia de uma certa ausência de representação das suas vivências na assepsia do padrão Globo de qualidade.

Esta trajetória aderente ao sistema de Silvio Santos escondeu durante um certo tempo falcatruas das suas empresas, como o escândalo do Banco Panamericano e rombos nas contas do SBT, sem contar os problemas de gerenciamento do canal de televisão que nunca conseguiu emplacar uma grade horária mais estável, afugentando parte do mercado publicitário. 

O presidente Lula, na sua mensagem de condolência à morte de SS, disse também que "era o fim de uma era". Não sei se este era o significado que o presidente quis dizer, mas a estratégia "panis et circenses" de SS que foi fundamental para a consolidação da política de cultura de massas da ditadura nos anos 1970 já não tinha mais tanto espaço. De qualquer forma, ele soube se beneficiar deste período e ficou milionário.

Se há alguma "competência" em Silvio Santos foi aproveitar este momento e construir um bem-sucedido plano de negócios adequado a um momento autoritário e violento vendendo lenitivos aos domingos por meio do principal canal comunicativo construído com este objetivo: a televisão. Este foi o papel de Silvio Santos na história do Brasil.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum