POLÍTICA E DISPUTA

O centro político não existe, é uma lenda, como Papai Noel - por Gilberto Maringoni

Quem é classificado como "centro" na vida como ela é? O MDB? O PSDB? Geraldo Alckmin? Simone Tebet? Com todo o respeito, essas agremiações e personalidades não se pautam pela luta contra a desigualdade. Nunca se pautaram. São de direita

Alckmin, Macron e Kamala Harris: algum deles é "de centro"?.Créditos: Ag. Brasil / Reprodução
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Uma das grandes lendas do nosso tempo é a existência de um suposto centro como posição política. É palavra elevada ao patamar de conceito e utilizado à larga por analistas políticos, jornalistas e até mesmo acadêmicos. O que seria esse centro? 

Seria uma diretriz equidistante da direita e da esquerda, um ponto médio, pautado pelo senso comum, pelo equilíbrio e que reuniria o melhor das demais posições? Se adotarmos a definição de Norberto Bobbio, de que a esquerda se caracterizaria pela busca da igualdade, podemos aduzir que a direita se pauta pelo oposto, pela desigualdade. 

A FORÇA DA DESIGUALDADE
Não é força de expressão. Pelas palavras de formuladores das diversas facções da direita, 
a desigualdade move a competição entre seres humanos em busca da excelência, do sucesso e da geração de riqueza, enfim. Num plano político mais amplo, podemos afirmar que a esquerda se pauta pelo coletivo e a direita pelo indivíduo. De um lado está um sistema cooperativo e de outro um universo individualista, como pregava Adam Smith: "Todo indivíduo está continuamente esforçando-se para achar o emprego mais vantajoso para o capital que possa comandar. É sua própria vantagem, de fato, e não a da sociedade, que ele tem em vista. Mas o estudo de sua própria vantagem, naturalmente, ou melhor, necessariamente, leva-o a preferir aquele emprego que é mais vantajoso para a sociedade". Não se tratam de direitos individuais, mas da métrica básica da livre iniciativa de agentes autônomos no mercado. 

Para a direita, o problema social não está na desigualdade – cuja eliminação exige transformações estruturais -, mas na pobreza, que pode ser reduzida através de medidas administrativas sem que se toque em suas causas.

O que seria o centro, a partir daí? Seria a busca por uma desigualdade não muito desigual, uma união de contrários? Uma desigualdade progressista, para nos fiarmos no neoliberalismo progressista, na expressão cunhada por Nancy Fraser? Um igualitarismo competitivo? Enfim, o chamado centro busca resolver problemas sociais sem alterar a estrutura de classes dessa sociedade.

NUANCES À DIREITA E À ESQUERDA
Pode existir uma direita com preocupações sociais, uma direita moderada? Sim, mas sua ação essencial é "desigualitária". Políticas de ajuste fiscal, de redução de inflação via compressão da demanda, de redução de políticas e serviços públicos são o oposto do que a esquerda, em suas várias nuances, sempre pregou. Mudanças dentro da ordem são sempre cosméticas e conservadoras. Há também facções da esquerda que não pregam uma ruptura social, mas buscam domesticar o mercado, estabelecer políticas fiscais progressivas e embutir custos sociais ao funcionamento do capitalismo que tocam em interesses dos mais ricos.

Confuso? Sim. Vamos ao mundo real. 

Quem é classificado como "centro" na vida como ela é? O MDB? O PSDB? Geraldo Alckmin? Simone Tebet? Com todo o respeito, essas agremiações e personalidades não se pautam pela luta contra a desigualdade. Nunca se pautaram. 

Olhemos para fora de nossas fronteiras. Olhemos para Macron, o menino-prodígio do mercado financeiro. O presidente francês aboliu em 2017 o imposto sobre fortuna, ampliou por decreto a idade mínima de aposentadoria e eliminou direitos trabalhistas. É tido como de centro, embora não veja muitos problemas em alianças com a chamada direita tradicional. Olhemos para Olaf Scholz, para Rishi Sunak e para outras lideranças europeias. Estão todos comprometidos com alianças globais com Israel e se pautam pelo expansionismo bélico na OTAN. No caso de Joe Biden, apesar da tentativa de taxar ricos e ampliar o sistema público de saúde, é fortemente ligado a Wall Street (para não falar de sua política externa). Usualmente todos são arrolados no grande escaninho político do centro.

Esse time nada tem de centrista. Pode integrar uma direita moderada, uma direita institucional ou até uma centro-direita (a direita aqui é dominante). Classificar tais lideranças como centro mais encobre do que revela distinções políticas.
 
SEMEANDO A CONFUSÃO
Centro é conceito tão definidor de orientações políticas quanto chamar alguém de "progressista", ou de “populista”. São palavras que valem para tudo, em qualquer tempo e lugar, próprios da feroz guerra ideológica desatada após a queda do socialismo real. São termos – e não conceitos – mais ligados ao comportamento do que a visões estruturantes do mundo. Ser de centro ou ser progressista não classifica nada e nem ninguém, mas são palavras simpáticas para adjetivar tendências políticas “do bem” (outra expressão inócua). “Populista”, de outra parte, seria quase um xingamento.

O mote dos anos 1990 era dizer que as distinções de direita e esquerda estariam superadas. Samuel Huntington foi um dos que deu feitio acadêmico ao advogar que a partir dali, “A fonte fundamental de conflitos (...) não será principalmente ideológica ou econômica (...) será cultural”. Ou seja, a ordem internacional não estaria mais em pauta, mas questões religiosas, étnicas, de costumes etc. Para usar um conceito tido como antiquado, a luta de classes estaria superada como contradição principal no que o pensador estadunidense classificava como “novo mundo”. 

O problema desses rótulos genéricos é gerar confusão e ajudar a naturalizar diferenças e nuances políticas, como se tudo fosse uma geleia geral. Inclusive o fascismo, que seria um “populismo nacionalista” no dizer dessa novilíngua pasteurizante.

A luta pelas palavras não é algo secundário na disputa política. Vocábulos encerram e sintetizam concepções políticas e historicidades profundas. Definem agendas e orientações ideológicas e podem esclarecer ou confundir a opinião pública. Disputar conceitos é algo que deve estar no centro da ação política. Ops, desculpe: na essência da ação política.