Uma nota extra de crueldade na descoberta dos mandantes do assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes: as famílias foram recebidas no dia seguinte à morte pelo delegado Rivaldo Barbosa, chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro, que cuidou de consolar as famílias e garantir que o caso era uma prioridade e seria solucionado rapidamente. Ele, que tinha planejado o crime. É simultaneamente uma nota cruel e reveladora do ponto a que chegou a degradação do Rio de Janeiro. Além dele, o deputado federal Chiquinho Brazão (UB-RJ) e o chefe do clã, Domingos Brazão, membro do Tribunal de Contas do Estado do Rio (TCE) foram igualmente presos.
No Rio, 1) parte da cúpula da PM e da Polícia Civil é composta por subordinados dos bicheiros e milicianos, assim como alguns policiais federais que operam no estado; 2) a Câmara e a Assembleia Legislativa têm bancadas de representantes dos dois ramos criminosos, eleitos por diversos partidos; 3) o Poder Judiciário e o MP têm prestadores de serviços aos grupos na sua cúpula; e 4) o cenário no Poder Executivo é idêntico, com membros ou representantes dos bicheiros ou das milícias em diversas instâncias no governo do Estado e a prefeitura da capital, mas não só -inclusive no primeiro escalão. Para completar, os laços entre milícias e algumas igrejas fundamentalistas cristãs são cada dia mais profundos.
Se a situação no Rio é por si só gravíssima, há um acento ainda mais dramático, trágico: a influência das milícias e bicheiros já se expressa em âmbito federal e começa a ser replicada em outros estados. Um cenário sombrio para o país nos próximos anos.
As prisões e outras ações da PF deste domingo, por conta da investigação realizada a partir da posse de Lula, desnudam as relações dos partidos e forças políticas no Rio com as milícias. Todas as forças mantêm relações de promiscuidade com o clã Brazão e, indiretamente, com as milícias. As principais são: 1) o bolsonarismo; 2) o PT; 3) o grupo liderado pelo prefeito de Belford Roxo, Waguinho, marido da ex-ministra Daniela do Waguinho; 3) Eduardo Paes e 4) Cláudio Castro.
1) BOLSONARISMO
Os clãs Bolsonaro e Brazão mantêm há anos relações de colaboração e concorrência na zona Oeste do Rio. Um dos elos que une os dois clãs é a utilização dos serviços do Escritório do Crime, um grupo de matadores oriundos da PM que prestava e ainda presta serviços tanto para milícias e bicheiros como para políticos no Estado. Ronnie Lessa era uma das figuras de maior destaque do Escritório do Crime, um matador famoso no submundo. O asssassinato de Marielle é o mais famoso de seus crimes, mas está longe de ser o único, e suas relações com os dois clãs são agora notórias.
Outro líder do Escritório, ainda mais famoso que Lessa, é o ex-capitão do Bope Adriano da Nóbrega. Por anos, sua mãe e esposa foram assessoras do gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro. Nóbrega jactava-se de ser tanto um exímio matador como um perito em tortura. Acabou morto em 2020 na Bahia numa operação típica de queima de arquivo ainda hoje não esclarecida.
Rivaldo Barbosa foi nomeado chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro em 8 de março de 2018 e tomou posse no cargo um dia depois do assassinato de Marielle. Os responsáveis pela nomeação foram o general Braga Netto, então interventor na segurança pública no Estado, e o secretário de Segurança escolhido por ele, general Richard Fernandez Nunes.
2) PT
As relações entre o clã Brazão e o PT no Rio são antigas e não são propriamente secretas. Ainda em janeiro deste ano, quando vazaram as primeiras notícias da delação de Ronnie Lessa apontando para os Brazão, o deputado federal Washington Quaquá, vice-presidente do PT e um dos maiores caciques da legenda no Rio, saiu em defesa de Domingos Brazão. Ao fazer a defesa, reconheceu que as relações entre o partido e o clã são antigas: “Conheço o Domingos Brazão de longa data, inclusive de campanhas eleitorais nacionais onde ele esteve do nosso lado. Sinceramente, não creio que ele tenha cometido tal brutalidade”.
A declaração de Quaquá não é um raio em céu azul. Outro cacique do PT do Rio, André Ceciliano, tem relações de intimidade com o clã. Bem antes de ser eleito presidente da Alerj, Ceciliano foi articulador na Casa para a eleição de Domingos Brazão ao Tribunal de Contas do Estado (TCE), em 2015. Relator da indicação, Ceciliano ignorou a já longa ficha corrida de Domingos Brazão e referendou a indicação assegurando que tinha “reputação ilibada, conhecimentos jurídicos, contábeis e econômicos”. Anos depois, já presidente da Assembleia, nomeou Luciano Souza como chefe da TV Alerj. Era um braço direito de Domingos Brazão, havia atuado nas campanhas de Flávio Bolsonaro, e geriu um orçamento anual superior a R$ 10 milhões.
Além de Quaquá e Ceciliano, outros líderes do PT do Rio têm relações políticas de longa data com o clã Brazão.
3) GRUPO DE WAGUINHO
O prefeito de Belford Roxo, Wagner dos Santos Carneiro, o Waguinho, que se aproximou do presidente Lula durante a campanha eleitoral de 2022, tem uma bancada própria na Câmara dos Deputados. Ele é o marido da deputada federal Daniela do Waguinho (UB-RJ), que entre janeiro e julho de 2023, como ministra do Turismo do governo Lula, assinou como Daniela Carneiro. As ligações do casal com as milícias são históricas e amplamente conhecidas, mas isso não impediu Daniela de se tornar ministra. Tudo pelas mãos de André Ceciliano, responsável pela aproximação de Lula com os Waguinho.
A bancada de Waguinho na Câmara tem cinco parlamentares, todos eleitos pelo União Brasil no Rio:
Chiquinho Brazão, um dos mandantes da morte de Marielle preso neste domingo.
Juninho do Pneu, ex-vice prefeito de Nova Iguaçu, é outro nome vinculado às milícias. Foi secretário dos Transportes de Cláudio Castro, sucedido em 2022 por André Nahass. Quem indicou Nahass para o cargo? Domingos Brazão, de quem Nahass fora advogado.
Marcos Soares, filho de RR Soares, dono da Igreja Internacional da Graça de Deus e de mais 12 empresas, várias delas de mídias, e com fortuna estimada em R$ 800 milhões.
Dani Cunha, filha de ninguém menos que Eduardo Cunha, outro velho aliado do clã Brazão.
Durante o período de Daniela Carneiro como ministra, assumiu o suplente Ricardo Abrão -ele é ex-presidente da Beija-Flor e sobrinho de Anísio Abraão David, patrono da escola de samba e um dos maiores líderes da cúpula do jogo do bicho no Rio de Janeiro. Caso Chiquinho Brazão seja cassado, o que deve acontecer em tempo recorde para a Câmara dos Deputados, ele reassume o mandato. O nome dele é ilustrativo da convergência entre as milícias e os bicheiros.
4) EDUARDO PAES
Em outubro de 2023, quando o envolvimento do clã Brazão com o assassinato de Marielle Franco já era amplamente conhecido, o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, nomeou Chiquinho Brazão como secretário municipal de Ação Comunitária. A nomeação tem tons inacreditáveis: o prefeito do Rio entregou para as milícias do Rio a secretaria responsável pela ação nos bairros mais pobres da cidade! No ato da nomeação, ele alegou que a nomeação fez parte de um processo de articulação política encetado pelo governo Lula.
As relações de Paes com o clã Brazão são de intimidade. Assista ao vídeo abaixo, de agosto de 2023, menos de dois meses antes da nomeação de Chiquinho como seu secretário.
Nele, Paes afirma que “quem mais briga pelas coisas de Jacarepaguá é a família Brazão”. No comício, ele brinca carinhosamente com Chiquinho Brandão e seu irmão Pedro Brazão (deputado estadual), este último aparentemente não envolvido com o assassinato. O líder do clã, Domingos, não estava lá, mas Paes refere-se a ele como “Dominguinho”. Mais que isso: ele lança o filho de Domingos Brazão, Kaio, como candidato a vereador nas próximas eleições. Tudo em clima de congraçamento e festa.
Assista:
Neste domingo, Paes silenciou sobre as prisões. A Prefeitura divulgou uma nota anódina informando que Chiquinho Brandão teria sido exonerado “no início de 2024”. Ele não foi exonerado, pediu demissão quando viu o cerco fechar-se para reassumir o mandato em Brasília.
A aliança de Paes com o clã Brazão marca outra nota de crueldade no caso: candidato apoiado por Lula e pelo PT para reeleição, o nome que chegou a ser cogitado para candidata a vice foi o da ministra Anielle Franco -a hipótese não prosperou. Abraçada pelo delegado que arquitetou a morte de Marielle, dona Marinete correu o risco de ver sua outra filha candidata ao lado de um grupo político de relações íntimas com os mandantes do crime.
5) CLAUDIO CASTRO
Para além das relações com o universo das milícias que marcam sua trajetória e uma aproximação ainda maior depois que se tornou um importante apoiador do bolsonarismo no Rio, o governador Claudio Castro manteve, desde 2021, toda a estrutura que submeteu a segurança pública do Rio ao jogo de interesses do bicho e das milícias. Somente em novembro passado reverteu a extinção da Secretaria de Segurança, feita em 2019 por Wilson Witzel, num período de festa para bicheiros e milicianos. Seu secretário de Polícia Civil, Allan Turnowski, que diz ter uma relação de “respeito” com Ronnie Lessa, foi preso em setembro de 2022, por ser um representante do bicho dentro da Polícia Civil.
Castro é mencionado no relatório da PF que embasou a ação deste domingo por sua proximidade com o clã Brazão: “Outro fato que aproxima Brazão do Governador Claudio Castro é o aparelhamento da Fundação Leão XIII, vista em tópico específico, cuja suspeita de desvio de recursos de seus contratos é objeto de Inquérito Policial de Relatoria do e. Ministro Raul Araújo, perante o c. Superior Tribunal de Justiça”. A investigação dizia respeito a contratos fraudulentos da Fundação estadual com envolvimento e parceria entre Claudio Castro quando vereador (2017-19) e vice-governador (2019-21), em parceria com os Brazão.
Na última quarta-feira (20), às vésperas da operação da PF, Castro manifestou seu reiterado desprezo pelo caso de Marielle Franco. Em pleno Palácio do Planalto, depois de uma reunião com Lula, o governador do Rio, quando perguntado sobre a expectativa de desfecho do caso, cuspiu: “Só o que tem até agora são fofocas jurídicas e políticas”.
Uma crise profunda
A situação no Rio de Janeiro é de descalabro total, com o Estado em todas as suas dimensões entregue às organizações criminosas, especialmente às milícias e ao jogo do bicho. Conversa-se em off com políticos e autoridades do Rio e todos compartilham da mesma tese: não há o que fazer, a realidade é essa. A frase fatalista, unânime: é preciso se acomodar. O Rio foi lançado num buraco sem fundo.
O processo de degradação do Rio já lança suas sombras para Brasília. E começa a espalhar-se para outras unidades da Federação.
O cenário à frente não comporta otimismos fáceis.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.