Casava e engordava.
Toda noite era noite. Casa e bar, cama e mesa, apetite insaciável. Tornava-se outro homem, romântico, até mais bonito.
Separava e emagrecia.
A dor de cotovelo a tomar conta do corpo, da alma, da vida. Um ex-marido torturado pela certeza de que tinha feito tudo errado.
A sanfona sentimental, do engorda-e-emagrece, começara na juventude, se estendia depois do meio século de vida.
Quem conta tudo isso a um amigo, enquanto espera mesa num restaurante, é um escritor de vários romances premiados e de uma novela que fez história na TV brasileira.
O autor e ídolo, ali, a dois metros de distância, e o fã, apenas um aprendiz de escritor, sem coragem de cumprimentar ou pedir uma foto. Quase um detetive, se satisfazia em escutar.
Até que, para a tristeza dele, a garçonete chama o escritor e o amigo para uma mesa.
Só não é mais trágico porque no último minuto, ainda ali na fila de espera, o autor anuncia:
- História boa é a do colchão.
- Conta, pede o amigo.
- Meu pai, com mais de 80, falou sério: “Filho, já que lista de casamento você nunca teve, porque não casou de verdade, preparei uma lista de separado. É tudo baratinho já que vivo do INSS. Tem aqui dois pratos, talheres, toalha de banho, panela de pressão, lençol, quatro cabides, colher de pau e esse álbum de retratos que sua mãe tanto adorava.”
- E você?
- Eu agradeci. Foi aí que o velho me surpreendeu: “o melhor presente deixei pro final, filho. É um colchão. Comprei zero bala. É de molas, resiste mais que o de espuma. Você vai voltar a sonhar, garoto”.
O escritor ajeitou a camisa pra dentro da calça e comentou que o presente vinha com um problema: o que fazer com o colchão usado?
Primeiro tentou vender num grupo de aplicativo, nada.
Aí, resolveu doar.
O porteiro agradeceu e recusou. Estava satisfeito com o que dividia com a mulher.
- Em time que ganha a gente não mexe, doutor. Já são quinze anos de casamento.
A primeira instituição de caridade aceitou, mas quando soube que ele morava no quarto andar de um velho prédio sem elevador, desistiu. O asilo público num bairro distante, se interessou, mas desde que ele pagasse o frete.
Rejeição demais para o parceiro de quase uma vida. Só podia agradecer aos bons serviços do veterano e já deformado colchão.
Como esquecer que entre o forro e a espuma do colchão, novinho em folha naquela época, ele escondeu um punhado de dinheiro com medo do confisco de um tresloucado governo? O tecido reforçado aguentou choro, suor e outros aromas que deixaram marcas e manchas. Já a valente estrutura suportou malabarismos e estrepolias de noites e dias inesquecíveis. Sem falar do vira pra lá e pra cá nas insônias.
Enfim, escritor e amigo sentaram, diante da garçonete impaciente com a demora. O fã, acompanhado apenas da curiosidade, matutou em seu próprio colchão, de currículo muito mais modesto, como teria terminado o drama do famoso contador de histórias.
Dias depois cruza com o inesperado.
Dois jovens a atravessar a avenida São João com um colchão largo e grosso. O peso é sustentado pelas duas cabeças, os pescoços brilham de suor e os braços tatuados apenas equilibram os quilos que não conseguiriam levar. Como estátuas, motoboys, ciclistas, motoristas, pedestres admiram a travessia.
A carga cortou os becos da área mais abandonada do centro. Ali, onde centenas de pessoas adorariam deitar em qualquer superfície mais macia e limpa do que as calçadas.
Os carregadores enfim chegam ao destino. Para entrar no prédio, o colchão é virado em posição vertical, o zelador e o faxineiro ajudam. O estrupício desaparece atrás da porta de vidro.
Em três minutos a dupla desce leve, livre e balançando os pescoços.
Ainda congelado na avenida São João, o aprendiz de escritor pensa que se um dia encontrar novamente o ídolo não vai apenas ouvir. Dessa vez, terá uma boa história para contar.
*Luis Cosme Pinto é autor do livro de crônicas Birinaites, Catiripapos e Borogodó, da editora Kotter
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.