Madrugada.
Lua cheia atrás da nuvem. Noite escura. Rua iluminada por fracas lâmpadas amarelas. Frio. Um desconforto que, antes de ser físico, é psicológico.
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Alguém insiste ao violão uma música que não nasce. Dedilha, repete, cantarola. Mas ainda não é por ali. É quase. É o único som que ouvimos o desse violão que não se resolve.
Na volta pra casa, sozinho, não há medo de assalto nem nada. Apenas o desconforto. E um certo pressentimento.
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A mulher chama o compositor para a cama. Por que insiste, se a noite vai alta e a madrugada a devora trazendo a manhã? Na noite silenciosa ouve-se a voz dela claramente. E ela nem grita. Fala mais alto apenas para que ele a ouça em outro aposento.
Mas a noite é tão silenciosa que é possível ouvir o som da própria respiração.
A nuvem se movimenta, vagarosa. Já é possível enxergar de um lado a luz da Lua. O compositor quer homenageá-la. Mais, quer porque quer usar a palavra "merencória", como fez Ary Barroso na Aquarela do Brasil. Ele pesquisou o sentido. A Lua melancólica. Gostou e quer usá-la. Insiste.
Na rua, o homem ouve ao longe um barulho de lata caindo no chão. Observa, na penumbra, distante, um pequeno vira-lata.
Na calçada oposta, um gato preto, que se esgueirava rente aos muros, para ao pressenti-lo.
O cão segue, ignorante do gato, até que para no ponto de lixo para deixar sua marca.
O gato o observa, paralisado.
O cão levanta a pata e vira a cabeça para a outra calçada. Só aí vê o gato.
Os olhares dos dois se cruzam.
O cão termina o que havia começado a fazer e segue em frente, confiante.
O gato acelera o passo na direção oposta.
Nunca mais se verão novamente.
Aquele olhar foi o único que trocaram em vida.
E este registro, tudo o que restou.
O homem chega diante de seu prédio. Para, no instante mesmo em que o músico desiste da composição e diz para a mulher: "Estou indo".
Mas, antes, o músico chega até a janela. No instante em que a nuvem descobre a merencória Lua. O músico sorri.
Mas o homem não viu nada disso, pois já havia entrado no prédio, merencório como a Lua, sem brilho como ela sem o Sol.
*Antonio Mello, escritor, blogueiro do Blog do Mello, autor do romance ELA (linktr.ee/blogdomello), publica uma crônica todo domingo aqui na Fórum.