Nos anos 1970, quando eu era um jovem militante, com 20 e poucos anos, li num texto de Ho-Chi-Min, algo que tenho presente até hoje. Ele afirmava que, dada a desproporção de forças entre os revolucionários e os representantes das classes dominantes, era da maior importância política que ficasse clara a superioridade moral dos primeiros.
Para ilustrar o que dizia, Ho contava uma história relacionada com a Guerra do Vietnam (1955-1975). O país estava sendo atacado por bombardeios diários da aviação norte-americana. Algumas vezes, as aeronaves eram atingidas pela defesa antiaérea e saiam soltando fumaça, mas não chegavam a cair, conseguindo retornar às bases. E havia uma tendência a que se computassem aviões em situação assim como abatidos. Ho, então, ordenou: só poderiam ser contados como derrubados os aviões que estivessem no solo.
E explicava: justamente por não terem os poderosos meios de divulgação de que os Estados Unidos dispunham, era fundamental que os revolucionários vietnamitas cultivassem rigorosamente a verdade. Assim, quando eles afirmassem algo, todos – aí incluída a imprensa internacional – saberiam que o afirmado era realidade.
O rigor em relação à verdade, dizia ele, ainda que não usasse exatamente essas palavras, não era só uma questão de natureza moral, era também uma espécie de investimento político.
Foi, então, construída pelos vietnamitas uma reputação que se tornou decisiva para o desfecho da guerra. Tanto assim que, embora a resistência nos campos de batalha tivesse sido importantíssima, em grande medida o conflito se resolveu fora deles, na área da política, e até mesmo em território norte-americano. Chegou-se a um ponto que os EUA não tinham mais como sustentar – tanto internamente, como aos olhos do mundo - aquela intervenção injustificável. A superioridade moral dos vietnamitas era incontestável. Isso foi decisivo.
O livro “Guerra irregular” (Editora Contexto, 2009), um bom estudo do militar brasileiro Alessandro Visacro, especialista em contrainsurgência, conta (pag. 116) diálogo travado em encontro realizado depois de terminado o conflito, reunindo combatentes dos dois lados. Nele, em dado momento o coronel americano Harry Summers Jr, vangloriou-se: “Vocês nunca nos derrotaram no campo de batalha”. “Pode ser, mas isso é irrelevante”, respondeu tranquilamente um representante vietnamita. Visacro dá razão a este último.
Se isso vale para guerras, vale ainda mais para a luta política.
Qualquer observador da situação brasileira nos últimos anos, percebe a criminosa manipulação ocorrida na Lava Jato. Conhece o papel das bandas podres do Judiciário e do Ministério Público, das quais Sérgio Moro e Deltan Dallagnol são exemplos gritantes. Não é segredo, também, que parte importante da mídia deveria fazer uma profunda autocrítica pela cumplicidade com os procedimentos criminosos dessas bandas podres e por sua participação no processo espúrio que desaguou no impeachment de Dilma Rousseff.
É inegável que a corrupção não começou no Brasil com o PT ou com as esquerdas no governo. É inegável, também, que nem o PT nem as esquerdas são os maiores exemplos de corrupção no País. Mas, mesmo que os métodos de Moro e seus asseclas na Lava Jato se assemelhassem a uma pressão ilegal e criminosa a presos – “ou assina a confissão ou continua na cadeia” - os recursos devolvidos por alguns acusados atestam que, de fato, houve corrupção.
Isto posto – e até porque não se pode contar com a isenção de boa parcela da mídia, que tem a mão mais pesada quando trata de apontar erros da esquerda – é preciso um cuidado especial para construir uma imagem de rigor no trato com a coisa pública, de maneira que essa imagem se torne um instrumento a favor das forças que lutam por mudanças, e não o inverso.
Qualquer escorregão nesse terreno custa caro, como ficou claro nos últimos anos. Não à toa, a direita – a força mais envolvida na corrupção ao longo dos tempos – tem a luta contra ela como uma de suas principais bandeiras.
Esta questão nada tem a ver com o udenismo ou o denuncismo barato próprio do conservadorismo. Ao contrário, o rigor de parte da esquerda é importante justamente para não abrir a guarda para esse mesmo udenismo. Alguns argumentam que, com ou sem motivo justificado, a mídia direitista buscará cabelo em casca de ovo e levantará a bandeira da denúncia da corrupção, o que tornaria irrelevantes as preocupações levantadas aqui. Tal argumento não se sustenta. Evidentemente, essa bandeira será mais forte nas mãos dos conservadores se os fatos denunciados forem reais.
Não nos esqueçamos que, embora as manifestações de junho de 2013 tenham começado de forma difusa, nelas a revolta contra a corrupção estava muito presente e, depois, esse sentimento adubou o terreno para a farsa do impeachment de Dilma e a vitória de Bolsonaro.
Agora, vencida a dura batalha para impedir a reeleição do nazifascista, há com Lula na Presidência um governo que tem uma composição que vai da direita até a centro-esquerda. E há um Congresso majoritariamente reacionário, com a Câmara de Deputados controlada por um chantagista que representa o que há de pior na política brasileira e que busca se apropriar de recursos do Executivo para fins inconfessáveis.
Na eleição foi preciso uma composição com a direita para derrotar o fascismo. Depois, foi necessário abrir espaço para o Centrão para que o governo não fosse inviabilizado, apesar das concessões programáticas.
Nesse quadro, é possível que haja ministros cometendo malfeitos, para usar uma expressão cara a Dilma, o que não quer dizer que se deva fechar os olhos para isso. Mas assim funciona essa gente. No entanto, é diferente quando pessoas de esquerda fazem coisa semelhante, cavando boquinhas para parentes em tribunais de contas, bajulando o mercado financeiro ou aceitando a devastação da Amazônia e da Mata Atlântica em nome de sabe-se-lá-o-quê.
Os prejuízos, aí, não devem ser contabilizados em reais, mas numa moeda muito mais importante na política: a credibilidade. Por isso é preciso atenção.
Lembremo-nos das lições de Ho-Chi-Min.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.