OPINIÃO

Sobre a memória, Stuart e o bolsonarismo no Flamengo – Por Cid Benjamin

Recuperar a placa com seu nome e reconstruir o memorial é parte da luta para que não se repitam aqueles anos

Stuart Angel Jones.Créditos: Arquivo pessoal
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Na última segunda-feira, dia 8 de maio, o Ministério Público Federal pediu, oficialmente, à diretoria do Flamengo, informações sobre o paradeiro de uma placa em homenagem a Stuart Angel Jones, ex-remador do clube e militante político contra a ditadura, morto na tortura na base aérea do Galeão, no Rio de Janeiro.

Os restos mortais de Stuart nunca foram encontrados. Em setembro de 2019, seu assassinato foi reconhecido num atestado de óbito que caracteriza a morte como “não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro no contexto da perseguição sistêmica e generalizada à população identificada como opositora política ao regime ditatorial de 1964 a 1985”.

Agora, o MP deu dez dias para o clube informar o que foi feito da placa. Desde 2010, ela estava num memorial na sede de remo do Flamengo, na Lagoa, como parte de um projeto intitulado Lugares da Memória. Foi retirada de lá em 2016, quando foram realizadas obras no local.

Além disso, os procuradores regionais dos Direitos do Cidadão Jaime Mitropoulos, Júlio José Araújo Junior e Aline Caixeta lembraram ao presidente do Flamengo que constitui obrigação do Estado e direito da sociedade o resgate e a preservação da história de mortos e desaparecidos durante a ditadura militar, incluindo a conservação e a restauração de monumentos alusivos à repressão política.

Segundo afirmaram os procuradores, esta é “uma forma de garantir às gerações futuras o direito de conhecer as violações sistemáticas dos Direitos Humanos praticados pelo Estado, de modo a prevenir, inibir ou, pelo menos, mitigar as chances de que voltemos a repetir no futuro as violações já cometidas no passado”.

Lembrou também o MP que cabe aos agentes públicos e particulares responsáveis pelos bens relacionados à preservação da memória prestarem informações que possam auxiliar na sua localização.

O Ministério dos Direitos Humanos se somou a esse esforço e tem um projeto de reinauguração da placa. Por meio de Nilmário Miranda, assessor especial de Memória e Verdade, também intimou o clube para que informe seu paradeiro. Há suspeitas de que a diretoria do Flamengo, controlada por bolsonaristas, a tenha posto no lixo.

Em reportagem publicada no “Globo” (5/5/2023) e assinada pelo jornalista Chico Otávio, um dos mais importantes repórteres do País, há a informação de que, embora procurada pelo jornal, a diretoria do clube preferiu não se manifestar.

Stuart foi meu companheiro de militância política no movimento estudantil em 1968 e, posteriormente, na resistência armada à ditadura, como integrante do Movimento Revolucionário 8 de Outubro. Estivemos juntos na primeira ação de guerrilha urbana de que cada um participou, em fevereiro de 1969.

Mais tarde, em abril de 1970 fui preso e, dois meses depois, enviado para o exterior, em troca do embaixador alemão, que fora sequestrado por grupos guerrilheiros. Stuart foi capturado em maio do ano seguinte.

Na ocasião, outro preso na base aérea do Galeão, Alex Polari, o viu ser torturado com choques elétricos, depois de pendurado no pau-de-arara. Testemunhou, ainda, que Stuart foi arrastado pelo pátio do quartel, amarrado ao para-choque de um jipe militar. E atestou ter visto militares colocarem sua boca no cano de descarga do jipe, o que, certamente, o matou pela inalação de monóxido de carbono.

Retomar essa placa e voltar a exibi-la ao público para que as novas gerações conheçam a história de Stuart é parte do esforço para que os chamados anos de chumbo não caiam no esquecimento.

Nós, brasileiros, estamos atrasados na recuperação da memória desse período. Isso é consequência da forma em que chegou ao fim a ditadura militar em nosso país. Ela não foi derrubada, mas saiu de cena num processo que os próprios militares controlaram.

Isso deixou enormes limitações na reconstrução da democracia. Nos nossos vizinhos dificilmente alguém se elegeria presidente da República pregando teses nazifascistas como as que Bolsonaro teve o desplante de sustentar ao longo de sua trajetória política.

Os demais países do chamado Cone Sul desenvolveram iniciativas muito mais expressivas no campo da recuperação da memória. Argentina, Uruguai e Chile construíram importantes museus, com denúncias dos crimes das ditaduras militares. Eles têm ampla visitação e estão sempre cheios de visitantes. Sua existência contribui para que a barbárie não se repita. Além disso, muitos dos principais responsáveis pelos crimes contra os direitos humanos e a humanidade foram levados aos tribunais e condenados, em processos que tiveram ampla divulgação na imprensa.

Homenagear Stuart não é só homenagear um jovem assassinado aos 25 anos por lutar pela democracia e contra a opressão. É homenagear também toda uma geração que jogou a vida e seu futuro em busca da construção de um mundo melhor.

Recuperar a placa com seu nome e reconstruir o memorial é parte da luta para que não se repitam aqueles anos.

E é também mostrar ao País e aos fascistas que hoje dirigem o Flamengo que quem melhor representa as cores rubro-negras não são eles, mas gente como Stuart.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.