LAIRA VIEIRA

O poder simbólico de 'V de Vingança'

O 5 de novembro já passou, mas a relevância da mensagem do filme V de Vingança é atemporal

Cena do filme 'V de Vingança'.Créditos: Divulgação
Escrito en OPINIÃO el

Na escuridão de um futuro distópico, emerge um filme que lança um grito de alerta contra o perigo de um governo totalitário, a perda de liberdade de expressão dos cidadãos e o poder das ideias -  que são à prova de balas. V de Vingança (2005), dirigido por James McTeigue (O Corvo, Invasores) e baseado na história em quadrinhos de Alan Moore e David Lloyd, é uma obra cinematográfica que vai muito além do entretenimento. 

V de Vingança - disponível na HBOMax - se desenrola em uma Londres futurista, onde um governo totalitário impõe sua vontade sobre a população. A liberdade de expressão é banida, a cultura é reprimida, e as vozes dissidentes são silenciadas. O protagonista, V, interpretado por Hugo Weaving (Matrix; Priscilla, A Rainha do Deserto), é um misterioso revolucionário que usa a máscara de Guy Fawkes - o mais conhecido membro da Conspiração da Pólvora, uma tentativa de explodir a Câmara dos Lordes (em Londres, 1605) - e tem como alvo o regime opressor. Ele incita o povo a se levantar contra a tirania, buscando vingança pelos horrores cometidos contra ele. V sequestra Evey Hammond, interpretada por Natalie Portman (Cisne Negro, O Profissional), uma jovem que é lançada involuntariamente no mundo da resistência. A trama se desdobra em uma emocionante jornada de autodescoberta, vingança e redenção.

A abertura do filme é uma cena ardente, uma explosão que desencadeia um turbilhão de reflexões. A máscara de Guy Fawkes, icônica, emerge como um símbolo de resistência e rebeldia. Nesse futuro distópico, o poder totalitário do Alto Chanceler Sutler, interpretado por John Hurt (1984; Alien, O Oitavo Passageiro) é evidente. A sociedade está aprisionada em um estado de medo, vigilância constante e censura. É uma metáfora assustadora do que poderia acontecer quando a liberdade é sacrificada em nome da segurança.

A sombra do fascismo

O filme é uma reflexão direta sobre o perigo de um governo totalitário. O regime retratado se assemelha a regimes fascistas do século XX, com seu culto à personalidade do líder, supressão da imprensa livre, perseguição de minorias e uma máquina de propaganda eficaz. O Alto Chanceler Sutler personifica o tirano que usa o medo como arma para consolidar seu poder - essa representação é uma advertência contra a deriva autoritária que pode ocorrer em sociedades supostamente democráticas.

A ausência de liberdade de expressão é um tema central do filme - os cidadãos vivem com medo de expressar suas opiniões, pois sabem que a censura está sempre observando. O governo controla a mídia e manipula a narrativa para seu próprio benefício - em época de tantas fake news, fica o alerta: essa é uma crítica contundente aos regimes que silenciam a voz do povo, negando-lhes o direito fundamental de se expressar.

As ideias são à prova de balas

Um dos aspectos mais poderosos do filme é a noção de que as ideias são à prova de balas. Ele utiliza o poder das palavras e ações para inspirar o povo a questionar o status quo. A máscara de Guy Fawkes se torna um emblema de coragem e desafio ao poder, demonstrando que as ideias podem ser imortais, transcendendo a violência física e opressão. 

As ideias não podem ser silenciadas por balas, tortura ou prisão. Elas são imortais e contagiosas, capazes de inspirar o povo a lutar por sua liberdade - e o filme ressalta que, mesmo quando o indivíduo é reprimido, as ideias podem viver para sempre e guiar a luta por justiça e liberdade.

O perigo da alienação popular 

A alienação da sociedade é um tema crucial em V de Vingança e uma crítica mordaz à nossa era digital. No filme, a população vive em um estado de conformidade e apatia, isolada umas das outras. As pessoas se tornam cúmplices passivas do regime opressor, absorvidas por distrações superficiais. Isso reflete uma preocupação real em nossa sociedade contemporânea.

O estado de alienação da população é um dos aspectos mais sombrios do filme - e que podemos observar atualmente. As pessoas vivem em um estado de conformidade, desconectadas umas das outras e de sua própria humanidade. Essa alienação é uma crítica à sociedade moderna, onde a tecnologia, o entretenimento superficial e o consumismo podem levar à apatia e à falta de engajamento político.

O filme também toca na questão da manipulação da informação. O governo distópico do filme usa a mídia para controlar a narrativa e manter a população em um estado de desinformação. Esse aspecto da história ressoa em um mundo onde a desinformação e as notícias falsas são preocupações reais - inclusive no Brasil - e nos faz questionar a importância da busca pela verdade e o papel da mídia na formação da opinião pública.

Evey passa por uma jornada de transformação ao longo do filme. Sua identidade é obscurecida e recriada sob a influência de V e da Resistência. Isso destaca o preço da revolta e as consequências de desafiar um governo opressor - a perda de identidade é um custo significativo na busca da liberdade.

Simbolismos

V de Vingança conquistou um lugar especial na cultura pop e na consciência coletiva. A data de 5 de novembro, marcada pela famosa frase "Lembrem-se, lembrem-se do 5 de novembro", tornou-se um símbolo de resistência e celebração da liberdade. É a data na qual Guy Fawkes tentou explodir o Parlamento Britânico - A Conspiração da Pólvora. Embora tenha fracassado, o legado de Fawkes vive no filme, e na máscara que se tornou um símbolo global da rebelião.

A máscara de Guy Fawkes é usada em protestos ao redor do mundo como um emblema de resistência contra a opressão e a censura - também se tornou símbolo dos hackers conhecidos como 'Anonymous'. E esse é apenas um dos motivos pelo qual o filme permanece relevante - porque lembra às pessoas que a luta pela liberdade é contínua, não importa o tempo que passe. O filme se tornou um farol de esperança e uma lembrança de que o poder das ideias pode transcender gerações.

Nas Entrelinhas do Filme

V de Vingança não se limita a uma narrativa superficial; ele tece várias teorias e ideias complexas nas entrelinhas. 

A Teoria da Desobediência Civil, de John Locke, é a base para o não conformismo vista no filme, e nos lembra que a luta por direitos fundamentais é eterna. O longa-metragem ecoa o espírito revolucionário presente nas palavras de Locke, pois V se torna o arauto da revolta contra o Alto Chanceler Sutler.

A sociologia de Émile Durkheim, que explora a Anomia Social e a Alienação, encontra eco na Londres distópica de V de Vingança. A população vive uma existência alienada, com laços sociais enfraquecidos e um profundo sentimento de desamparo. 

A jornada de Evey Hammond, que é despojada de sua identidade e forçada a se reconstruir sob a influência de V, nos faz refletir sobre a antropologia cultural de Margaret Mead. A cultura e a identidade são moldadas pelas circunstâncias, e a transformação de Evey nos mostra como as pessoas podem se adaptar e resistir em face da adversidade.

Podemos observar que as teorias econômicas de Karl Marx e Adam Smith lançam sombras sobre a sociedade distópica, onde a desigualdade é gritante.

A obra  é influenciada por outras obras distópicas notáveis, como 1984 de George Orwell e Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley. Esses romances distópicos abordam temas semelhantes de vigilância, repressão e conformidade. O filme dialoga com essas obras ao criar sua própria visão sombria de um futuro totalitário. Essa conexão literária amplia a relevância do filme e o situa no cânone da ficção distópica.

O Despertar da Consciência Individual

Além disso, V de Vingança celebra o poder da consciência individual. Os personagens do filme passam por jornadas de autodescoberta e questionam o mundo ao seu redor. Evey, por exemplo, evolui de uma pessoa comum a alguém comprometido com a causa da resistência. Isso destaca a importância de questionar a autoridade e não aceitar a opressão como inevitável. O filme nos encoraja a buscar nossa própria verdade e agir em conformidade.

Também são levantadas questões éticas profundas sobre o uso da violência e da vingança na luta contra o autoritarismo. V, como protagonista, emprega táticas controversas, incluindo assassinato e destruição. A narrativa força os espectadores a enfrentar dilemas morais complexos. Isso alimenta discussões sobre se a violência é justificável quando usada contra um governo totalitário. O filme não fornece respostas fáceis - e nos desafia a considerar a complexidade dessas questões éticas em situações extremas.

Um chamado à ação 

V de Vingança é mais do que um filme; é um manifesto. É um chamado à ação contra o autoritarismo, a censura e a perda de identidade. A obra nos lembra que as ideias são poderosas e que a resistência é necessária quando a liberdade está ameaçada. É um alerta atemporal sobre os perigos que espreitam quando o poder é centralizado e a voz do povo é silenciada. À medida que examinamos as teorias filosóficas, sociológicas, antropológicas e econômicas que permeiam o filme, somos confrontados com uma realidade que nos força a refletir sobre nosso próprio mundo.

É um filme que transcende o entretenimento, oferecendo uma análise contundente e perspicaz dos perigos do totalitarismo, da perda de liberdade de expressão, do poder das ideias, da perda de identidade e da alienação do povo. 

O legado de V de Vingança é um farol que ilumina o caminho para um mundo mais livre e igualitário - e "lembrem-se, lembrem-se do 5 de novembro."

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum