OPINIÃO

Hamas e Netanyahu: os “espantalhos” da cobertura midiática sobre a geopolítica palestina

Espantalhos construídos pela mídia não têm por objetivo enganar pássaros, mas eliminar a historicidade do conflito Israel-Palestina, buscando ludibriar e direcionar o público para apoiar a agenda sionista.

Guga Chacra, Jorge Pontual e Marcelo Lins: o trio de analistas sobre a guerra na Palestina na GloboNews.Créditos: Reprodução/GloboNews
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Conforme aprendemos desde criança, os agricultores, para ludibriar e espantar os diferentes tipos de pássaros, impedindo que ataquem hortas e plantações, criam bonecos que simulam a presença humana: os famosos espantalhos.

Embora, nos dias atuais, esses bonecos não sejam tão utilizados quanto em outras épocas, nos discursos geopolíticos da imprensa brasileira, especificamente sobre as relações entre israelenses e palestinos, também podemos encontrar certos “espantalhos”.

Evidentemente, os espantalhos construídos pela mídia não têm por objetivo enganar pássaros, mas eliminar a historicidade do conflito Israel-Palestina, buscando ludibriar e direcionar o público para apoiar a agenda sionista.

Assim, nas narrativas da GloboNews, Folha de São Paulo, Estadão e afins, todo o histórico do genocídio do povo palestino é apagado e substituído pelo conflito entre Israel, um “Estado democrático e soberano”, contra o “espantalho” Hamas, “grupo terrorista e extremista islâmico”.

Diferentemente do genocídio palestino, que remente, pelo menos, à fundação de Israel, em 1948; na grande mídia, o conflito entre Israel e Palestina, rebatizado de “Israel versus Hamas”, começou no dia 7 de outubro de 2023, quando o “grupo extremista islâmico” promoveu “ataques terroristas” contra o território israelense. “O maior atentado contra judeus desde o Holocausto”, afirmou o correspondente da GloboNews em Nova York, Jorge Pontual (insinuando uma falsa similaridade entre antissionismo e antissemitismo). 

Por consequência, o telespectador/ouvinte/leitor que desconhece a geopolítica palestina, ao ter contato sistematicamente com matérias e imagens relacionadas às perdas humanas em Israel, pode ser levado a apoiar as “retaliações” israelenses contra o “grupo extremista”.  Somando a esse quadro, ainda temos as absurdas fake news, sobre os líderes do Hamas serem bilionários que levam vidas de luxo no Qatar ou o grupo ser responsável pela decapitação de bebês, crianças e mulheres e, posteriormente, colocá-los em fornos.  

Seguindo essa lógica, parte da esquerda deixa de apoiar o povo palestino em sua luta contra o opressor israelense, recorrendo a “teoria dos dois demônios”, malabarismo retórico, criado na Argentina, para amenizar os crimes da ditadura militar naquele país, a partir do pressuposto de que, em um confronto, há excessos de ambos os lados. Logo, entre “dois demônios”, o discurso do “isentão progressista” – pretensamente crítico e ponderado – passa a ser “nem Israel, nem Hamas”; o que, no mínimo, corresponde a ser indiferente ao genocídio palestino.

Não se trata de idolatrar o Hamas. Longe disso. Mas, a despeito de suas contradições, o grupo é a principal resistência armada em Gaza contra Israel, vide, por exemplo, a imobilidade dos países árabes. Lembrando uma famosa frase: “é o que temos pra hoje”.

Isso não significa, logicamente, “passar pano” para todos os atos do Hamas. Porém, na presente conjuntura, não há como condicionar o apoio à causa palestina ao surgimento de um grupo revolucionário marxista no Oriente Médio que lute contra o opressor sionista.

Além disso, de acordo com o próprio princípio de autodeterminação dos povos, corroborado pela ONU, as diferentes populações têm o direito de lutar contra a dominação colonial e a ocupação estrangeira, e contra regimes racistas, no exercício de sua autodeterminação (seja qual for o meio para tal).

Ora, “dominação colonial”, “ocupação estrangeira” e “regime racista” são termos que traduzem perfeitamente a presença de Israel nos territórios palestinos.

Também é importante frisar que o Hamas surgiu no final da década de 1980, nos desdobramentos da Primeira Intifada; e chegou ao poder na Faixa de Gaza em 2006. Logo, está presente em um pequeno período da secular animosidade entre israelenses e palestinos. Não faz sentido colocar o grupo como protagonista no histórico da geopolítica palestina.

Por outro lado, em tempos de redes sociais e imprensa alternativa atuante, é difícil para a grande mídia esconder do público a desproporcional reação israelense aos ataques do Hamas. Não adianta a âncora do Jornal da Globo, Renata Lo Prete, recorrer à Pirâmide Etária para justificar o elevado número de crianças mortas em Gaza pelos ataques do exército israelense ou o anteriormente mencionado Jorge Pontual defender bombardeio de ambulâncias para atingir os “terroristas do Hamas”. É fato: com seus crimes de guerra cada vez mais explicitados, Israel já não tem o mesmo apoio global de outrora.

Eis que, então, surge outro “espantalho”: o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu. É claro que se trata de um político execrável. Porém, assim como o Hamas, Netanyahu está presente em um período ínfimo da história do conflito entre Israel e Palestina.

Desse modo, a manobra discursiva consiste em creditar “eventuais excessos” do exército israelense contra a população palestina não como uma prática típica do projeto sionista (“política de Estado”), mas como algo exclusivo do atual mandato de extrema direita (“política de governo”).  

Parafraseando Rousseau, a mídia quer dizer o seguinte: “Israel é um país, naturalmente bom, Netanyahu que o corrompe”.

Ainda nessa linha de personalizar os noticiários, declarações polêmicas, como as proferidas pelos ministros israelenses Itamar Ben-Gvir – sobre o direito dos judeus de viajar e viver em segurança na Samaria e Judeia ser mais importante do que a liberdade de movimento dos árabes – e Amichai Eliyahu – que sugeriu uso de bomba atômica em Gaza – ,são concebidas como “casos isolados”, pensamentos independentes de certos indivíduos “radicais”; e não como se estivessem ligadas ao próprio modus operandi de Israel.

Não nos iludamos. Conforme nos demonstram as leituras das obras de Walid Khalidi, Edward Said, Ralph Schoenman e Ilan Pappé, a limpeza étnica da palestina, ou seja, a eliminação de sua população local árabe, é um dos principais pressupostos da ideologia sionista.

Mas, nas narrativas midiáticas, a impressão que se tem é que, retirados do jogo geopolítico os dois “espantalhos” citados neste texto, haverá paz na Palestina. Sem Netanyahu, Israel voltará a ser plenamente a “única democracia do Oriente Médio”. Eliminado o Hamas, os palestinos aceitarão sua condição de povo colonizado.

Portanto, é preciso ir além da des-historicização da geopolítica palestina promovida pelos grandes veículos de comunicação e denunciar qualquer tipo de artimanha discursiva que beneficie a propaganda de guerra pró-Israel. É claro que, como todo foco de tensão, a questão palestina tem suas complexidades. Mas isso não é desculpa para deixar de se posicionar.

Quando duas potências imperialistas estão conflito, aí sim, a “teoria dos dois demônios” pode ser evocada. Mas, para o campo progressista, remetendo a um infeliz editorial do Estadão, quando se trata de colonizadores (Israel) e colonizados (Palestina), não há “uma escolha muito difícil”.