OPINIÃO

Jornadas de Junho, dez anos depois – Por Francisco Fernandes Ladeira

Há dez anos uma onda de protestos, a partir de atos pela redução da tarifa do transporte público em São Paulo, se espalhou por várias cidades do país, mobilizando milhões de pessoas

Manifestação contra aumento da tarifa de ônibus SP em 7 de junho de 2013.Créditos: https://www.flickr.com/photos/mariaobjetiva/8982057882 via Wikimedia Commons
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Há dez anos, em junho de 2013, uma onda de protestos, a partir de atos pela redução da tarifa do transporte público em São Paulo, se espalhou por várias cidades do país, mobilizando milhões de pessoas. Tratava-se da maior série de manifestações de rua ocorrida no Brasil desde o movimento pelo impeachment de Fernando Collor, duas décadas antes.

Convocadas pelo Movimento Passe Livre (MPL), as primeiras mobilizações, restritas a poucos milhares de participantes, tinham como pauta questionar o aumento no preço das passagens de ônibus na capital paulista (de R$3,00 para R$ 3,20). No entanto, aos poucos, a pauta se ampliou. A frase “não é por vinte centavos”, escrita em muros de São Paulo, deixou claro o desejo de extrapolar a reivindicação original.

Como de costume, a violência policial – cujo ápice ocorreu no dia 13 de junho, quando a PM atacou manifestantes, deixando mais de 150 feridos – despertou a solidariedade de pessoas que, até então, não tinham se envolvido com o movimento. Essa adesão tornou os protestos mais abrangentes. Algo muito forte estava acontecendo. Era difícil ficar indiferente.

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No entanto, as primeiras manifestações que culminaram naquilo que passou para a história como “jornadas de junho de 2013” não foram noticiadas pela grande imprensa. Porém, com o assunto cada vez mais comentado nas redes sociais, a mídia hegemônica (que não detém mais o monopólio de ditar a agenda pública nacional) teve que noticiar. Ao seu modo, é claro, mas não pôde ficar indiferente.

A princípio, a postura da grande mídia em relação aos protestos foi o que se esperava: qualificaram os manifestantes como “arruaceiros”, “vândalos” e “criminosos”, entre outros adjetivos com forte carga semântica negativa. Cenas de depredações de patrimônios públicos e privados eram repetitivamente exibidas nos principais canais de televisão do país.

No entanto, diante do amplo apoio da opinião pública às manifestações e da inevitabilidade de conter os protestos em curto prazo, os grandes grupos de comunicação (e os setores conservadores da sociedade, de maneira geral), estrategicamente, passaram a adotar outro discurso em relação a estes acontecimentos. Lembrando o ditado popular: “se não pode com o inimigo, junte-se a ele”. Ou seja, se as manifestações são inevitáveis, então é melhor procurar adaptá-las à sua ideologia e tentar manipular a população para aderir a temas inerentes ao pensamento conservador.

Desse modo, o que outrora era visto como “movimento organizado por agitadores radicais”, passou a ser concebido como “legítima mobilização popular”. “As manifestações, desde que pacíficas, sem vandalismos, são bem-vindas em uma democracia”, passou a ser o mantra repetido ad nauseam pela imprensa hegemônica na época.

No livro A radiografia do golpe: entenda como e por que você foi enganado, Jessé Souza relata como a mídia brasileira, notadamente o Jornal Nacional, se aproveitou da mobilização popular em todo o país para “federalizar” as manifestações que, até então, estavam centradas em questões municipais, direcionando a revolta popular para o governo Dilma Rousseff, tendo como base o velho e moralista discurso “anticorrupção”. Infelizmente, tal empreitada deu certo.

A temática “corrupção” voltava a todo vapor aos noticiários; de maneira extremamente seletiva, resguardando determinadas legendas, e atacando outras, sobretudo aquelas ligadas à esquerda política. Assim, a mídia reverberou o álibi perfeito para, posteriormente, a classe média dançar em torno do Pato Amarelo da Fiesp e pedir “Fora Dilma!”.

Por sua vez, grupos supostamente apartidários (mas ligados à direita política até o último fio de cabelo) “convocavam” a população para as manifestações em todo o país (a essa altura do campeonato, já transformadas em “picadeiro para direitista”). Um ano depois, esses grupos dariam origem às organizações Vem Pra Rua e Movimento Brasil Livre (MBL), lançando aos holofotes personagens nefastos como Kim Kataguiri, Fernando Holiday e Arthur do Val.

Meio século após a malfadada “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, a direita estava novamente ocupando as ruas (tradicionalmente, lugar de embate apropriado pela esquerda).

Para engrossar os movimentos ligados às jornadas de junho (que além de tirar o PT do cenário político, também visavam fortalecer o principal partido de oposição da época: o PSDB), a cadela do fascismo, “sempre no cio”, como dizia Brecht, foi convocada.

Consequentemente, todo tipo de obscurantismo pôde, enfim, sair do armário. Viúvas da ditadura não mais se intimidavam em pedir golpe militar. Discursos de ódio ao pobre se tornaram cada vez mais comuns nas redes sociais. Racistas, homofóbicos e misóginos se sentiram à vontade para expor suas ideias preconceituosas.

A parte mais obscura da personalidade humana, designada por Jung como “sombra”, chegou à superfície. Lembrando um dos slogans das jornadas de junho: o “gigante acordou”, mas ele era autoritário, excludente, homofóbico, machista, racista e moralista.

Melhor seria se continuasse dormindo!

Enquanto isso – seja por ingenuidade política ou mero oportunismo eleitoreiro (por acreditar que ocuparia o lugar do PT como principal organização do campo progressista) – boa parte da esquerda fez coro com o antipetismo propagado pela direita e não denunciou os perigos que já se anunciavam nessa guinada autoritária da sociedade brasileira (com mais um golpe de Estado no horizonte).

Indiretamente, essa esquerda contribuiu para a atual ascensão do fascismo no Brasil, a partir de Cavalos de Troia, como o (supostamente revolucionário) movimento “Fora Todos Eles!”, do PSTU, que concebia Dilma Rousseff, Lula, Temer, Renan Calheiros, Eduardo Cunha e Aécio Neves como “ideologicamente iguais”. Ironicamente, um cartaz com as palavras de ordem do PSTU chegou a ser afixado em um mural próximo ao prédio da anteriormente citada Fiesp (ao lado de cartazes em defesa da Operação Lava Jato).

Para tal esquerda, no contexto pós-jornadas de junho, “lutar contra o ajuste fiscal de Dilma Rousseff” era mais importante do que “lutar contra o golpe em curso”. Resultado: o “Teto de Gastos”, do golpista Temer, fez o ajuste fiscal petista parecer brincadeira de criança.

Sem dúvida, a figura pública que mais angariou dividendos com o antipetismo, com junho de 2013 e o posterior Golpe de 2016 foi Jair Messias Bolsonaro (parlamentar do baixo clero, mais conhecido por suas polêmicas aparições em programas televisivos popularescos, onde, de forma caricata, propagava suas ideias extremistas).

No entanto, não se tratou de algo planejado. Como dito há pouco, o objetivo da empreitada contra o PT era a volta da direita tradicional ao poder (leia-se: PSDB). Com bem sintetizou o presidente Lula: “Plantaram Aécio e colheram Bolsonaro, o subproduto do ódio contra o PT”.

Solta para “morder” a esquerda, a cadela do fascismo não quis voltar para a coleira; tampouco ser coadjuvante na cena política nacional. Inclusive, chegou à presidência em 2019 (com o governo que, tragicamente, sabemos como foi).

Dez anos depois das jornadas de junho, o PSDB, supostamente o maior beneficiado do antipetismo, é um moribundo político. Já aqueles mesmos indivíduos da direita tradicional que ajudaram a libertar a cadela do fascismo (notadamente os articulistas da grande imprensa), fingem não ter nada a ver com isso. Filho feio não tem pai! Mas, se para derrubar o PT novamente, for preciso recorrer ao golpe ou ao fascismo, não pensarão duas vezes.

Por outro lado, a esquerda antipetista, para não admitir a atuação como massa de manobra das forças conservadoras, propaga a falaciosa hipótese de que as jornadas de junho de 2013 não contribuíram para recente ascensão fascista no Brasil, para a radicalização da sociedade e para o crescimento do sentimento antipolítica (que, além de Bolsonaro, também gerou as eleições de figuras danosas como Romeu Zema e João Doria).

Essa mesma esquerda, apesar de, na última eleição presidencial, ter se juntado à candidatura petista para evitar a tragédia que seria um segundo mandato de Jair Bolsonaro (seja por oportunismo político ou desespero), com apenas seis meses de Lula de volta ao poder, prefere atacar o governo, ao invés de denunciar as investidas da direita contra o petista. Não é porque ganhamos a eleição que o perigo do projeto fascista/neoliberal deixou de nos assolar.

Se tivéssemos um golpe em curso hoje (se é que não há?), tal esquerda diria que “o mais importante, no momento, é barrar o Arcabouço Fiscal de Haddad” ou “o governo tem que cair mesmo, pois quer explorar petróleo na Amazônia e não revogou o Novo Ensino Médio”. Lembram aqueles jovens mimados de classe média, que acusam João Gordo de ter traído o movimento punk. Não é exagero dizer que poderiam, novamente, pavimentar o caminho para mais um Bolsonaro da vida chegar à presidência.

Não por acaso, no Twitter, o ativista social Gabriel Barbosa alertou: “Se algum ator político, dito de esquerda, está metendo pau no governo, rola perguntar onde este estava nas ‘jornadas de 2013’. São os mesmos atores. Os mesmos!”.

Como já disse Marx: “A história se repete, a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”.
 

* Francisco Fernandes Ladeira é doutorando em Geografia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e autor de dez livros, entre eles 'A ideologia dos noticiários internacionais' (Editora CRV).

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.