OPINIÃO

Em relação à geopolítica, grande mídia é a principal disseminadora de fake news

No início dos anos 90, uma surreal matéria do Jornal Nacional apontava o suposto cumprimento de uma profecia de Nostradamus, a respeito de “uma grande invasão maometana, sob a liderança do sétimo anticristo”.

William Bonner e as profecias de Nostradamus no Jornal Nacional nos anos 90.Créditos: Reprodução/Youtube
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Em 2017, o dicionário britânico Collins elegeu a expressão “fake news” como a palavra do ano. Tratam-se de informações falsas, frequentemente de caráter sensacionalista, disseminadas sob o disfarce de notícia.

Quando se fala em fake news, muitos pensam em Donald Trump, grupos de WhatsApp bolsonaristas ou bolhas ideológicas virtuais.

No entanto, não temos contato com notícias falsas apenas na internet. Em relação à geopolítica global, por exemplo, podemos afirmar, tranquilamente, que a grande mídia é a principal disseminadora de fake news, haja vista os insistentes discursos sobre “o ditador Maduro”, “o grupo terrorista Hamas”, “a ditadura da Nicarágua”, “os unicórnios norte-coreanos” e “Israel, ao atacar os territórios palestinos, não acerta alvos civis”, entre tantos outros.

Como veremos a seguir, o Oriente Médio parece ser a região do planeta preferida pela imprensa hegemônica para divulgar fake news (via de regra, com “notícias” negativas em relação à civilização muçulmana).

No início dos anos 90, uma surreal matéria do Jornal Nacional apontava o suposto cumprimento de uma profecia de Nostradamus, a respeito de “uma grande invasão maometana, sob a liderança do sétimo anticristo”.  No caso, a “invasão maometana” seria a Guerra do Golfo (quando o Iraque ocupou e anexou o vizinho Kuwait, sendo posteriormente atacado por uma coalização internacional liderada pelos Estados Unidos). Já o “sétimo anticristo” era o então presidente iraquiano Saddam Hussein.

Ainda neste contexto, a partir de uma lógica de manipulação mais sofisticada, a imprensa brasileira reproduziu a falsa narrativa de seus congêneres estadunidenses sobre o conflito no Golfo ser uma “guerra segura, sem óbitos, com o uso de armas inteligentes e bombardeios cirúrgicos por parte do exército dos Estados Unidos”.

A partir de então, conforme apontou Sandro Heleno Morais Zarpelão, em sua dissertação de mestrado, foi construída a imagem midiática sobre a Guerra do Golfo ser “uma guerra limpa, quase sem mortes”. Consequentemente, muitos indivíduos acreditaram que praticamente não houve vítimas fatais naquele conflito, porque viram/ouviram/leram na imprensa tratar-se de uma “guerra limpa”.

Uma década depois, em sua cobertura sobre o famoso atentado de 11 de setembro, a CNN exibiu imagens do que seria um grupo de palestinos comemorando os ataques, em Jerusalém Oriental.

A partir da notícia vinda da rede de televisão estadunidense, no Jornal Nacional, Willian Bonner destacou que “nos territórios ocupados por Israel, palestinos comemoravam a maior ofensiva terrorista de todos os tempos”. Na sequência, Ernesto Paglia acrescentou: “Terror na América, festa no Oriente Médio. Nas ruas dos territórios palestinos ocupados por Israel, os americanos são vistos como amigos do inimigo israelense. Portanto, inimigos que merecem o pior. Há muita gente disposta a festejar a desgraça alheia diante das câmeras internacionais”.

Poucos dias após o atentado, informações presentes na internet indicavam que as imagens do suposto festejo de palestinos eram manipuladas. Prontamente, a CNN negou que tivesse forjado tal celebração. Porém, após o desmentido oficial, as imagens não voltaram a ser transmitidas e lançou-se um véu de silêncio sobre o assunto.

Em 2006, após informações divulgadas pelo think tank estadunidense Fundação de Defesa da Democracia (FDD), passou a circular na imprensa brasileira um boato sobre a presença da organização libanesa Hezbollah na região da Tríplice Fronteira (Brasil, Argentina, Paraguai), atuando no contrabando de cigarros e tráfico de drogas e armas.

Emplacada a suposta notícia, a FDD dobrou a aposta (evidentemente, acompanhado pela imprensa hegemônica brasileira). Em 2007, Emanuelle Ottolenghi, membro do think tank, afirmou que o Hezbollah atuava em parceria com o Primeiro Comando da Capital (PCC) – organização cujas atividades são financiadas por tráfico de drogas (principalmente), roubos de cargas, assaltos a bancos e sequestros. Não havia nenhum dado que corroborasse tal informação. No máximo, citação a vagas “fontes da Polícia Federal”.

Não obstante, nos discursos midiáticos, mesmo acontecimentos sem nenhum tipo de relação com os povos muçulmanos são associados negativamente ao islã.

No primeiro semestre de 2011, o ativista de extrema direita, Anders Behring Breivik, depois de lançar explosivos em uma região administrativa de Oslo, abriu fogo contra as pessoas que estavam em um acampamento organizado pela juventude do Partido Trabalhista, localizado em uma ilha ao norte da capital norueguesa, causando cerca de noventa óbitos.                                     

Em um “furo jornalístico”, o New York Times, sem a polícia local ter apontado algum suspeito, noticiou que um grupo islamita até então desconhecido, chamado Ansaral-Jihad al-Alami (Colaboradores da Jihad Global), emitira um comunicado pouco depois dos ataques, proclamando sua autoria. De acordo com a suposta declaração, o atentado teria sido uma resposta a presença de tropas norueguesas no Afeganistão e à publicação de charges que ridicularizavam o profeta Maomé pelo jornal Aftenposten.                    

Conforme era de se esperar, veículos de comunicação brasileiros (como as revistas Época, Veja e Isto É!) também aderiram ao falacioso discurso do diário nova-iorquino. Porém, declarações públicas do próprio assassino revelaram um indivíduo com visões extremistas, que incluem conservadorismo cultural radical, ultranacionalismo, islamofobia, homofobia e racismo. Um perfil muito diferente do que se poderia esperar de um “terrorista muçulmano”.      

Já no mês passado, após a contraofensiva do Movimento de Resistência Islâmica (Hamas) em relação à Israel – midiaticamente definida como “ataque terrorista” – David Ben Zion, comandante do exército daquele país, relatou à repórter do canal de televisão i24News, Nicole Zedeck, que militantes do braço armado do Hamas, as Brigadas Qassam, supostamente haviam “decapitado bebês israelenses” no kibutz de Kfar Aza, perto da cidade de Sderot, na fronteira com a Faixa de Gaza. “Um dos comandantes aqui disse que, ao menos, 40 bebês foram mortos. Alguns deles foram decapitados, ele disse que nunca viu um ato de brutalidade desta forma”, afirmou Nicole.

Em seguida, compartilhando a notícia na rede X (antigo Twitter), a jornalista afirmou que “os soldados disseram que acreditam que 40 bebês/crianças foram mortos. O número exato de mortos ainda é desconhecido”.

No entanto se tratava de uma “fake news”; desmentida pelo próprio Exército de Israel, que divulgou não ter informações sobre a decapitação de bebês. Posteriormente, a repórter responsável pelo suposto “furo”, em sua página no X, teve que admitir que suas fontes eram soldados que “acreditam” que tais eventos ocorreram, mas “não há provas concretas”.

Mesmo assim, no Brasil, a notícia foi amplamente divulgada por parlamentares da extrema direita e pela grande mídia.  Segundo o Jornal O Globo, “Corpos de 40 bebês e crianças foram encontrados em comunidade atacada pelo Hamas, diz TV”. O portal de notícias G1 trouxe a seguinte manchete: “Oficial do exército de Israel diz que até bebês foram mortos em kibutz atacado pelo Hamas: Militares afirmam que viram bebês, mães e pais mortos em suas casas”. Na GloboNews, Jorge Pontual comentou sobre o “horror de todos, não só americanos e israelenses, diante dessa monstruosidade que o Hamas fez em Israel: é pior que terrorismo você decapitar bebês”.

Como espalhar fake news é “especialidade da casa”, também no canal de notícias da família Marinho, Mônica Waldvogel se sentiu completamente à vontade para afirmar que “parte do PT tem ligação com o Hamas”, mesmo sabendo que nunca houve qualquer tipo de ligação oficial do partido com o grupo palestino (lembrando que, na narrativa midiática, Hamas é sinônimo de “terrorismo”).

A geopolítica do leste europeu também não poderia deixar de ser alvo das fake news da Rede Globo. No primeiro mês da guerra Rússia-Ucrânia, em 25 fevereiro de 2022, o Jornal Nacional divulgou imagens de um tanque, de origem ucraniana, atropelando o carro de um civil. O problema é que, na ocasião, o telejornal de maior audiência da televisão brasileira noticiou o fato como se o veículo de combate fosse russo. Somente 24 dias depois foi corrigida a informação sobre o “tanque russo” na Ucrânia.

Diante dessa realidade, não por acaso, segundo estudo realizado pelo Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação (que reúne pesquisadores da UFMG, Unicamp, UnB e Uerj), 36% dos brasileiros consideram a própria imprensa tradicional como maior responsável pela propagação de notícias falsas no país. Em segundo lugar, apareciam Jair Bolsonaro e seus seguidores mais fiéis, com 22%, e, em terceiro, a esquerda e outras forças políticas, com 10%.

Portanto, levando em conta tal histórico de notícias falsas – seja por sensacionalismo barato, para atrair audiência ou defender um determinado viés ideológico – cabe aqui uma reflexão. Se o Grupo Globo possui um serviço de verificação de fatos, conhecido como “Fato ou Fake”, que tem por objetivo esclarecer conteúdos duvidosos, disseminados em redes sociais e aplicativos de mensagens instantâneas, a qual mecanismo poderemos recorrer para desconstruir as mentiras divulgadas pela família Marinho e congêneres? Eis a questão.