Tanto a ação armada do Hamas em Israel no sábado 7 de outubro quanto o massacre que as forças militares israelenses têm realizado, noite após noite, contra os palestinos residentes na Faixa de Gaza devem ser avaliados em um panorama mais amplo do que o mero noticiário cotidiano.
Esse panorama é o da luta de resistência do povo palestino ao domínio colonial imposto por Israel há 75 anos e à política genocida israelense de “limpeza étnica” da Palestina para viabilizar a implantação e a ampliação, no território histórico da população árabe originária, de um Estado judaico fundado com base em critérios étnicos e religiosos.
Os palestinos que lutam contra Israel em Gaza e na Cisjordânia (ilegalmente ocupadas) estão exercendo um direito garantido pelas leis internacionais, o direito à autodeterminação. Existem várias convenções internacionais e resoluções das Nações Unidas que garantem o direito à autodeterminação. Destacamos aqui a resolução 37/43 da Assembleia Geral da ONU, aprovada em 1982, que “reafirma a legitimidade da luta dos povos pela independência, pela integridade territorial, pela unidade nacional e pela libertação do domínio colonial e estrangeiro e pela ocupação estrangeira por todos os meios disponíveis, inclusive a luta armada”.
O recente ataque do Hamas pode ser encarado sob o amparo desse direito, garantido formalmente por decisões da ONU. É verdade que essa ação desesperada envolveu atrocidades contra civis israelenses, e isso não pode ser justificado por aqueles que, tais como nós, defendemos os direitos humanos em todas as circunstâncias. Não podemos aceitar a ideia perversa da punição coletiva – nem contra civis palestinos nem contra civis israelenses.
Dito isto, precisamos ter claro que a violência dos oprimidos não pode ser equiparada à violência dos opressores. Não existe equivalência possível. Os palestinos lutam para se libertar do domínio colonial, de um regime racista equivalente ao do apartheid sul-africano. Do outro lado, o Estado de Israel usa a violência de forma extrema e continuada para manter uma situação injusta que vai contra todos os valores da dignidade humana.
Israel pratica perante o povo palestino a mesma conduta que o filósofo camaronês Achille Mbembe atribui às potências europeias na sua relação com as nações colonizadas em tempos passados. Esse autor explica que as nações colonizadas e escravizadas, na África e em outros continentes, não eram vistas pelos europeus como entes jurídicos portadores de direitos. Os colonizadores não reconheciam as autoridades desses povos nem sua soberania sobre os territórios cobiçados. As chamadas “leis da guerra” não eram aplicadas pelas tropas coloniais, assinala Mbembe. Por não constituírem um espaço jurídico, as colônias podiam ser governadas na “ilegalidade absoluta”, o que tornava permitido o uso da violência sem limites pelos invasores ocidentais – a mesma ausência de limites que Israel reivindica na sua reação genocida ao ataque do Hamas.
É fútil discutir se o Hamas é ou não é terrorista. Não existe consenso nem jurídico nem acadêmico sobre o conceito de terrorismo. O governo brasileiro tem toda a razão quando resiste às pressões para qualificar o Hamas como grupo terrorista. O jornal Folha de S.Paulo, que todos os dias faz essa acusação contra o Hamas, diz que “o terrorismo é o uso da violência contra a população civil para disseminar o medo”. Com base nessa definição, o termo se aplicaria muito mais a Israel, com seus bombardeios cruéis, incessantes, desumanos, contra alvos civis em Gaza (“terrorismo de Estado”), do que ao Hamas.
Nesses bombardeios já tinham morrido até a terça-feira dia 24 de outubro, pela contagem da agência noticiosa árabe Al Jazeera, 5.087 palestinos, entre eles 2.055 crianças e 1.119 mulheres. Mortes reconhecidas, sem contar os mais de 1.400 desaparecidos (entre eles 720 crianças), cujos cadáveres provavelmente serão encontrados quando os escombros dos bombardeios forem removidos. A cada 15 minutos morre uma criança vítima dos ataques israelenses em Gaza. Vários hospitais já pararam de funcionar. Cirurgias são feitas sem anestesia, diante da exasperante carência de todo tipo de material médico e hospitalar, carência também de alimentos, água e eletricidade.
Nesse contexto de barbárie oficial, não é exagero dizer que a verdadeira organização criminosa é o Estado de Israel, com o reinado de morte e terror que está impondo aos 2,1 milhões de moradores de Gaza. E o Hamas, por mais que condenemos a brutalidade extrema de métodos utilizados por seu braço armado, é na sua essência uma organização insurgente que luta contra o genocídio e a “limpeza étnica” promovidos por Israel.
Na realidade, a própria existência de Hamas é consequência do comportamento de Israel, um país que, mais do que qualquer outro, descumpre sistematicamente todas as decisões da comunidade internacional. A mais importante dessas decisões é a Resolução 242 do Conselho de Segurança da ONU, adotada logo depois da guerra de junho de 1967, que determina “a retirada das forças armadas israelenses dos territórios ocupados no recente conflito”, o que inclui os territórios palestinos da Cisjordânia, Gaza e Jerusalém Oriental.
Se Israel tivesse cumprido a Resolução 242 da ONU, não existiria conflito armado na Palestina. Mas Israel desrespeita até mesmo os compromissos assinados por seus próprios governantes, a começar pelo mais importante deles, os Acordos de Oslo, de 1993. Naquela ocasião, a paz parecia ao alcance da mão. A Organização para a Libertação da Palestina (OLP), então liderada por Yasser Arafat, renunciou à luta armada e reconheceu o Estado de Israel, em troca da promessa de que Israel aceitaria a instalação de um Estado Palestino num prazo de cinco anos.
Essa promessa nunca foi cumprida. Em bem menos do que cinco anos Israel rasgou os Acordos de Oslo e intensificou a instalação de assentamentos judaicos na Cisjordânia ocupada, em terras tomadas à força dos moradores palestinos, sob a mira do fuzil, inviabilizando qualquer possibilidade de instalação de uma Palestina independente. Quando os Acordos de Oslo foram assinados, havia 170 mil colonos judeus nesses assentamentos na Cisjordânia ilegalmente ocupada; hoje são 750 mil. Cada vez mais, os colonos israelenses agem como milicianos, praticando todo tipo de assédio e truculência contra os moradores dos povoados palestinos. A estratégia é tornar a vida dos palestinos insuportável para que assim eles acabem emigrando, liberando espaço para a expansão de um Estado exclusivamente judeu.
Se Israel tivesse cumprido os Acordos de Oslo, se tivesse mostrado a mínima disposição de negociar a paz, não existiria uma organização com as características do Hamas. Ou se existisse legalmente o Hamas, seria um partido dentro de um Estado Palestino democrático, um Estado com suas próprias forças armadas. Ou seja: um Estado sujeito de direitos, submetido às regras e responsabilidades da ordem internacional – e que, certamente, jamais cometeria um banho de sangue contra civis indefesos em um país vizinho.
Diante de tudo isso, torna-se uma tarefa árdua e duvidosa cobrar respeito aos direitos humanos a pessoas que nunca tiveram qualquer direito respeitado. E se agora uma facção palestina que nem sequer representa a maioria dos integrantes desse povo está recorrendo à violência, é porque não foi deixado aos palestinos nenhum outro caminho que não seja a violência.
Todas as tentativas de uma saída pacífica para o impasse na região até agora foram bloqueadas, não só por Israel mas também por seus aliados e patrocinadores, especialmente os Estados Unidos, que sustentam a economia e as forças armadas israelenses com aportes de bilhões de dólares por ano. Ações na Corte Internacional de Justiça foram bloqueadas pelos EUA e seus aliados. O movimento Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS), um meio pacífico de exercer pressão sobre as autoridades israelenses a exemplo do que se fez contra a África do Sul na época do apartheid, foi colocado na ilegalidade em vários países da Europa, sob a acusação absurda de “antissemitismo” (segundo o governo israelense, qualquer crítica às suas políticas é “antissemitismo”).
Agora os EUA e a União Europeia aparecem dando um cheque em branco a Israel na forma do apoio incondicional às atrocidades cometidas em nome do direito à autodefesa, invocado de forma distorcida e desonesta. Sinal verde para o genocídio. Como fica o “mundo baseado em regras” de que os EUA e seus parceiros ocidentais tanto falam quando condenam as práticas de seus rivais nas disputas geopolíticas?
Os EUA e a Europa Ocidental denunciam o desrespeito ao direito internacional quando a Rússia invade a Ucrânia, mas fecham os olhos às violações constantes cometidas por Israel ao longo de décadas.
Do lado palestino, a OLP também já foi chamada de terrorista, também cometeu atrocidades contra civis, como no sequestro e assassinato de atletas israelenses nas Olimpíadas de Munique, em 1972. Depois, atraído pela perspectiva de negociar um acordo de paz com Israel, o líder histórico do povo palestino, Yasser Arafat, renunciou à via armada, reconheceu o Estado de Israel e fez a opção pelo caminho pacifico, cuja expressão mais importante foram os Acordos de Oslo, de 1993. Por esse acordo, a OLP foi autorizada a se instalar na Cisjordânia, constituindo a Autoridade Palestina, mediante a promessa da criação de um Estado Palestino em um prazo de cinco anos. Os pontos mais delicados, como a soberania sobre Jerusalém Oriental, o retorno dos refugiados e o desmantelamento das colônias judaicas nos territórios palestinos ilegalmente ocupados por Israel, tudo isso foi empurrado para mais tarde.
E qual foi o resultado dos Acordos de Oslo? A OLP foi traída, pois Israel não cumpriu nada do que foi combinado. O líder político que assinou os Acordos pelo lado israelense, Yitzhak Rabin, foi assassinado pouco depois por um fanático da extrema-direita de Israel e, desde então, todos os governos que se seguiram sabotaram o projeto do Estado Palestino e usaram a violência para ampliar o controle israelense sobre a área na qual esse Estado deveria se constituir. A Autoridade Palestina, humilhada a cada momento por Israel, passou a expressar apenas uma caricatura de autonomia, e já há muito deixou de ser vista pela população palestina como seu verdadeiro representante.
Tudo isso ocorreu e ocorre diante da impotência da ONU. A organização internacional, situada na origem do problema – com sua decisão de 1947, nunca cumprida, de partilhar as terras palestinas entre israelenses e árabes –, fracassou vergonhosamente em resolvê-lo, paralisada que está pelo veto automático dos EUA a qualquer atitude que contrarie, minimamente, os interesses de Israel.
Os EUA são o único ator político internacional em condições de resolver o conflito na Palestina, mas se recusam a fazer isso, optando pelo apoio irrestrito a Israel.
O que estamos assistindo é um retrato de um mundo ainda sob a hegemonia dos EUA, apesar de todas as mudanças geopolíticas em curso. Um mundo injusto e desigual, em que certos países são punidos com sanções, draconianas e unilaterais, supostamente por violarem os direitos humanos, enquanto o mesmo país que faz aplicar essas punições, os EUA, é o que mais atropela essas garantias, diretamente ou por meio de seus aliados.
Com o fracasso da ONU e a carta branca dos EUA para Israel pisotear os direitos dos palestinos, o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu passou a acreditar que tinha as mãos livres para “normalizar” suas relações com os países árabes, apagando o povo palestino do mapa do Oriente Médio. Agora, diante da ação do Hamas e do massacre dos palestinos em Gaza, a Arábia Saudita retrocedeu na sua intenção de assinar um acordo de cooperação com Israel, e o futuro político da região está em aberto.
Qual é o cenário que emerge dos últimos acontecimentos? De um lado um povo sem direitos, sem cidadania, que o ministro da Defesa de Israel, Yoav Gallant, qualificou recentemente como “animais em forma humana”. Do outro, um Estado ilegítimo, fundado sobre a usurpação de terras alheias e o ostensivo desrespeito às leis internacionais. Um regime de apartheid, e militarizado até a medula. Israel não é um país normal, todos deviam saber disso.
O que poderá resolver o prolongado impasse: uma reviravolta política em Israel? Uma mudança na política externa dos EUA? Um conflito militar de grandes proporções no Oriente Médio, com envolvimento do Irã, da Síria e da milícia libanesa Hizbollah? Ou uma quebra definitiva e indiscutível da hegemonia mundial dos EUA?
Essa possibilidade se apresenta como a única esperança. Um dia, de preferência mais cedo do que tarde, os EUA serão obrigados a renunciar à sua postura de “donos do mundo”, abrindo espaço para que certos temas considerados tabu, entre eles a chamada “questão palestina”, sejam efetivamente resolvidos pela comunidade internacional.
Até lá, quantos vão morrer, quanto sofrimento ainda vai rolar? Mas o povo palestino, que aguentou firme até agora, não vai desaparecer, não vai desistir de suas terras. A Palestina vencerá