HISTÓRIA CHINESA

O Último Imperador da China: a história real que inspirou um épico vencedor do Oscar

De monarca a jardineiro anônimo, a trajetória real de Puyi — e como seu tutor britânico e a Cidade Proibida refletem a queda de um mundo milenar

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Jornalista que atua em Brasília desde 1995, tem experiência em redação, em comunicação corporativa e comunicação pública, em assessoria de imprensa, em produção de conteúdo, campanha política e em coordenação de equipes. Atuou, entre outros locais, no Governo Federal, na Presidência da República e no Ministério da Justiça; no Governo do Distrito Federal, na Secretaria de Comunicação e na Secretaria de Segurança Pública; e no Congresso Nacional, na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados e na Comissão Mista de Planos, Orçamentos Públicos e Fiscalização (CMO).
O Último Imperador da China: a história real que inspirou um épico vencedor do Oscar
O Último Imperador da China: a história real que inspirou um épico vencedor do Oscar. De monarca a jardineiro anônimo, a trajetória real de Puyi — e como seu tutor britânico e a Cidade Proibida refletem a queda de um mundo milenar. Wikipedia

Puyi, o último imperador da China, teve uma trajetória marcada por contrastes profundos. Coroado em 1908, aos dois anos e dez meses, entrou para a história como o mais jovem soberano do país. Durante a cerimônia de coroação, chorava tanto que precisou ser carregado no colo.

Mesmo após abdicar formalmente ao trono em 1912, com a proclamação da República da China, permaneceu na Cidade Proibida por mais 12 anos. Ali, manteve rituais imperiais e privilégios simbólicos, embora sem qualquer autoridade política. Foi expulso em 1924, após um golpe militar.

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Na década de 1930, reapareceu como figura decorativa do Estado-fantoche de Manchukuo, instaurado pelos japoneses na Manchúria ocupada. Em 1934, foi proclamado “Imperador Kangde”, mas era controlado pelo Exército Imperial Japonês.

Com a derrota do Japão em 1945, tentou fugir com documentos que revelavam sua colaboração, mas foi capturado por soviéticos e levado à União Soviética. Em 1950, foi entregue à recém-criada República Popular da China (RPC), onde passou cerca de uma década em um centro de reeducação em Fushun.

Anistiado em 1959, passou a viver como cidadão comum. Trabalhou como jardineiro no Jardim Botânico de Pequim e tornou-se símbolo da transformação promovida pelo governo comunista. Em 1964, lançou sua autobiografia, Eu Fui Imperador da China (From Emperor to Citizen), escrita com apoio do Partido Comunista Chinês (PCCh).

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Sua vida singular inspirou o filme O Último Imperador (1987), de Bernardo Bertolucci, vencedor de nove Oscars (leia abaixo). A produção levou ao mundo a história de um homem que nasceu como Filho do Céu e morreu como cidadão comum em uma China radicalmente transformada.

Também conhecido como imperador Xuantong, Puyi foi o 12º soberano da dinastia Qing — a última da história imperial chinesa. Nascido em 1906, da família manchu Aisin Gioro, foi escolhido pela imperatriz viúva Cixi pouco antes da morte do imperador Guangxu. Sua abdicação, em 1912, marcou o fim de mais de dois milênios de monarquia, após a Revolução de 1911 liderada por Sun Yat-sen.

Nos anos finais, exerceu funções modestas e chegou a integrar o Comitê Nacional da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês. Faleceu em 1967, em Pequim, vítima de câncer nos rins.

Puyi simboliza o colapso da ordem imperial chinesa e as profundas transformações políticas do século XX. É lembrado como uma figura ambígua — um imperador sem poder, manipulado por potências estrangeiras e, depois, reabilitado por um regime que renegava a própria ideia de monarquia.

O tutor britânico do último imperador da China

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Um personagem impactante na vida do último imperador da China foi o seu tutor britânico. Sir Reginald Fleming Johnston (1874–1938), um diplomata, orientalista e escritor escocês que teve papel fundamental na juventude de Puyi. 

Johnston foi nomeado tutor imperial em 1919, quando Puyi tinha apenas 13 anos e vivia na Cidade Proibida, mesmo após a abdicação formal ao trono. Foi o primeiro estrangeiro a ocupar uma posição tão próxima do imperador e um dos poucos ocidentais autorizados a residir temporariamente dentro do complexo imperial.

Sua missão era ensinar inglês, história ocidental e temas contemporâneos, preparando o jovem para uma realidade em transformação. Mais do que um simples professor, Johnston tornou-se conselheiro próximo de Puyi, incentivando-o a adotar ideias modernas e a romper com tradições arcaicas, como o uso de eunucos e os rígidos protocolos cerimoniais.

Antes de assumir essa função, Johnston já era um renomado sinólogo, fluente em mandarim clássico e com ampla experiência consular em regiões como Hong Kong e Formosa (atual Taiwan). Produziu diversos estudos sobre a China, entre eles os livros From Peking to Mandalay (1908), Lion and Dragon in Northern China (1910) e Twilight in the Forbidden City (1934), este último com memórias detalhadas de sua convivência com Puyi e os bastidores do fim do império.

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Também atuou como professor de Estudos Orientais na Universidade de Edimburgo e foi condecorado cavaleiro pela Coroa Britânica por sua carreira acadêmica e diplomática. 

Sua figura representa uma ponte entre o declínio da dinastia Qing e o auge do colonialismo britânico. Enquanto alguns o veem como um mentor comprometido com a modernização da China, outros apontam os dilemas de sua atuação em um contexto de dominação ocidental. 

Johnston é lembrado como um dos raros estrangeiros a testemunhar, por dentro, os últimos anos da monarquia chinesa, deixando registros históricos valiosos — e também controversos.

A corte imperial chinesa

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Durante quase 500 anos, entre 1420 e 1912, a corte imperial chinesa esteve sediada na imponente Cidade Proibida, em Pequim. No coração desse vasto complexo vivia o imperador, considerado o “Filho do Céu”, figura sagrada que reunia em si a autoridade política e religiosa do império. A corte era altamente ritualizada, hierárquica e centralizada, funcionando como o centro do poder, da cultura e da administração do Estado chinês.

A Cidade Proibida: um mundo isolado do povo

Construída durante a dinastia Ming, a Cidade Proibida abrigava mais de 980 edifícios em uma área de 720 mil metros quadrados. Era chamada de “proibida” porque apenas o imperador, sua família, funcionários de alto escalão e servos autorizados podiam entrar. O espaço se dividia em duas áreas principais: ao sul, a Corte Externa, onde ocorriam cerimônias públicas e decisões políticas; ao norte, a Corte Interna, onde residiam o imperador, a imperatriz, as concubinas e os eunucos.

O imperador: centro do universo imperial

O imperador não era apenas um governante, mas o elo entre o Céu e a Terra. Sua missão era manter a ordem cósmica e garantir a harmonia do império. Embora concentrasse poder absoluto, sua autoridade era exercida dentro de uma complexa rede de rituais, conselheiros e normas ancestrais. Toda sua vida — das roupas aos horários — era regida por códigos simbólicos.

Quem fazia parte da corte imperial

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Funcionários civis (Mandarins)

Selecionados por meio dos Exames Imperiais — famosos por sua dificuldade —, esses burocratas conheciam profundamente os clássicos do confucionismo. Ocupavam cargos nos ministérios (como Justiça, Guerra ou Finanças) e formavam a espinha dorsal da administração imperial.

Conselheiros e grandes secretários

Os grandes secretários atuavam como assessores próximos do imperador, auxiliando na formulação de políticas. Já os conselheiros faziam recomendações, mas a decisão final era sempre do trono.

Eunucos (homens castrados)

Eram responsáveis pelos assuntos internos do palácio: cuidavam do imperador, das concubinas, da limpeza e da comunicação palaciana. Apesar de não fazerem parte da administração oficial, alguns acumularam grande poder, como Wei Zhongxian, que chegou a governar de fato durante a dinastia Ming.

Mulheres da corte

A imperatriz era a esposa oficial e ocupava o mais alto posto entre as mulheres. As concubinas tinham posições hierarquizadas e viviam sob vigilância rígida. Muitas competiam entre si por atenção e favores, pois um filho homem poderia se tornar herdeiro do trono.

Guarda imperial e exército

Responsáveis por proteger o palácio e escoltar o imperador, os soldados da guarda também participavam de cerimônias. Alguns atuavam como guardas rituais, reforçando o simbolismo do poder imperial.

Rituais e códigos simbólicos da corte chinesa

A rotina da corte era marcada por rituais precisos e altamente codificados. Havia cerimônias sazonais, como os sacrifícios no Templo do Céu, além de ritos de entronização, casamentos e funerais imperiais. O protocolo diário exigia que ministros ajoelhassem diante do trono, falassem com reverência e entregassem memorandos por escrito. 

Até a arquitetura expressava a hierarquia: o número de degraus, telhados e portas indicava o grau de importância de cada espaço. As vestimentas também seguiam regras rígidas: as cores, os bordados de dragões e o tipo de seda indicavam o status do usuário dentro da corte.

Além de sede do governo, a corte era um centro cultural. Ali floresciam a literatura, a música cerimonial, a pintura e a ópera tradicional. Calígrafos, músicos e artistas trabalhavam diretamente para o imperador. A educação dos príncipes e concubinas era pautada por valores morais confucionistas, que priorizavam a disciplina, a lealdade e a harmonia.

No século XIX, a corte imperial começou a perder poder frente às invasões estrangeiras e às crises internas. A Guerra do Ópio, a Rebelião Taiping e o avanço das potências ocidentais abalaram a estabilidade do regime. O sistema se tornou inchado e corrupto, e a influência de figuras como a imperatriz viúva Cixi e de eunucos poderosos agravou o desgaste.

A monarquia chegou ao fim em 1912, quando o pequeno Puyi, último imperador da dinastia Qing, foi forçado a abdicar após a Revolução de Xinhai. Com isso, mais de dois mil anos de império chegaram ao fim — mas a memória da corte e seus rituais ainda ressoam no imaginário da China contemporânea.

Filme épico conta a história de Puyi 

Divulgação

O filme O Último Imperador (The Last Emperor, 1987) é um filme épico, aclamado internacionalmente, que conta a fascinante e trágica história de Puyi, o último imperador da China. Dirigido por Bernardo Bertolucci, o longa apresenta uma reconstrução visual impressionante e profunda da vida de um homem que nasceu com o título de Filho do Céu, mas terminou seus dias como cidadão comum.

O longa foi escrito por Bernardo Bertolucci, Mark Peploe e Enzo Ungari, com produção de Jeremy Thomas. A trilha sonora é assinada por três nomes de peso: Ryuichi Sakamoto, David Byrne (ex-Talking Heads) e Cong Su. Com versões de 163 minutos (original para cinema) e 218 minutos (versão estendida), o filme foi lançado em 1987 e tem diálogos em inglês e mandarim. A produção é uma colaboração entre Itália, Reino Unido e China.

A obra conquistou nove Oscars em 1988, incluindo as categorias de Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Direção de Arte, Melhor Figurino, Melhor Fotografia, Melhor Montagem, Melhor Trilha Sonora Original e Melhor Som. Também venceu o Globo de Ouro de Melhor Filme e Melhor Diretor, além de prêmios importantes do BAFTA.

A narrativa acompanha a vida de Puyi desde sua infância, quando foi coroado imperador aos dois anos de idade, até sua morte. O filme mostra sua vida na Cidade Proibida, a perda do trono, o período como imperador-fantoche do Estado de Manchukuo sob o controle dos japoneses, sua captura pelos soviéticos após a Segunda Guerra Mundial, a reeducação durante o governo comunista e sua vida anônima como cidadão da China de Mao Zedong. A história é contada em estrutura não linear, com muitos flashbacks, o que dá ao filme um tom melancólico e reflexivo.

Uma das grandes conquistas da produção foi ter sido o primeiro filme ocidental autorizado a filmar dentro da Cidade Proibida, em Pequim. Isso oferece um valor visual autêntico e simbólico imenso. Além do aspecto histórico, o filme aborda temas profundos como identidade, solidão, a queda do poder imperial, o colonialismo, a manipulação política e a transformação pessoal diante de contextos violentos.

O elenco tem atuações marcantes. John Lone interpreta o Puyi adulto com sensibilidade e força, enquanto Peter O’Toole dá vida ao tutor britânico Reginald Johnston, personagem histórico real. O elenco chinês também brilha, especialmente nas fases iniciais da vida de Puyi.

Visualmente, o filme é deslumbrante. A fotografia usa paletas vibrantes, os figurinos são luxuosos e as locações históricas conferem autenticidade. A trilha sonora mistura instrumentos ocidentais e orientais, reforçando o sentimento de transição entre dois mundos — o império e a modernidade.

Assistir a O Último Imperador é mergulhar em um capítulo crucial da história da China moderna. O filme consegue equilibrar drama pessoal, rigor histórico e uma estética arrebatadora, oferecendo ao público um retrato humanizado do fim do império e das profundas transformações que moldaram a China do século XX.

No Brasil, o filme está disponível na plataforma de streaming Looke.

Assista ao trailer

Como a China de hoje vê o passado imperial

Pixabay

O Partido Comunista da China (PCCh) avalia que os quase dois mil anos de monarquia imperial marcaram o país e representam uma etapa necessária, mas superada, na trajetória de desenvolvimento da civilização chinesa.

A monarquia é retratada como um símbolo do atraso feudal. Em especial as dinastias Ming e Qing são criticadas por manterem estruturas altamente hierarquizadas, centralizadas e opressoras. O sistema imperial impediu avanços sociais e econômicos, manteve os camponeses em miséria e deixou a China vulnerável às invasões e humilhações impostas por potências estrangeiras.

Um dos alvos de crítica é a antiga burocracia imperial baseada no confucionismo. Embora a importância cultural do confucionismo seja reconhecida, os seus princípios de obediência e respeito à hierarquia ajudaram a sustentar uma ordem social rígida e conservadora, travando inovações e reformas necessárias.

As inúmeras revoltas populares ocorridas sob os imperadores são valorizadas. Rebeliões como a dos Turbantes Amarelos, a dos Taiping e a dos Boxers são interpretadas como formas iniciais de luta de classes e resistência contra a tirania feudal. Esses episódios são parte de uma genealogia revolucionária que culminou na vitória comunista em 1949.

A queda da dinastia Qing em 1911, com a Revolução de Xinhai, é vista como um marco importante na transição da China para a modernidade. No entanto, essa ruptura foi insuficiente: a instabilidade que se seguiu, com a fragmentação do poder entre senhores da guerra e o domínio do Partido Nacionalista (Kuomintang), mostra que apenas o comunismo foi capaz de unificar e desenvolver o país de forma duradoura.

O passado imperial não é completamente rejeitado e há reconhecimento e celebração de conquistas históricas da China imperial, como a invenção do papel e da pólvora, a construção da Grande Muralha e os avanços em irrigação e administração. Essas realizações são atribuídas ao "gênio do povo chinês" — e não ao mérito do sistema monárquico.

Sob a liderança de Xi Jinping, há uma revalorização simbólica da civilização chinesa como milenar e contínua. O presidente chinês frequentemente menciona os “cinco mil anos de civilização ininterrupta” para reforçar a ideia de um destino nacional grandioso. O socialismo com características chinesas representa o estágio mais avançado da longa jornada histórica da China.

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