história

Brasileiros são latinos? Entenda o conceito e a disputa sobre a identidade

Entenda a conceituação do Brasil dentro da ideia de América Latina

Escrito em História el
Jornalista formado pela Escola de Jornalismo da Énois e cientista social pela USP. Já publicou em veículos como The Guardian, The Intercept, Hypeness, UOL e Carta.
Brasileiros são latinos? Entenda o conceito e a disputa sobre a identidade
Memorial da América Latina, em São Paulo. Luís Blanco/Governo de São Paulo

A pergunta "Brasileiros são latinos?" parece simples, mas toca em feridas históricas, disputas geopolíticas e uma complexa construção identitária.

Enquanto geograficamente o Brasil é inquestionavelmente parte da América Latina, o sentimento de pertencimento à identidade latino-americana esbarra em barreiras históricas, culturais e políticas.

Neste artigo, nós vamos desvendar as origens do conceito, os dados sobre a autoidentificação dos brasileiros e os debates acadêmicos que explicam por que essa questão permanece tão controversa.

O que é "América Latina"?

A expressão "América Latina" não surgiu organicamente dos povos do continente. Como demonstram pesquisadores como Célio Augusto da Cunha Horta (UFMG) e Héctor Bruit, ela foi cunhada no século XIX em um contexto de imperialismo e disputa geopolítica:

  • Origem Francesa: O termo foi propagado durante o governo de Napoleão III (1852-1870), principalmente após a invasão francesa do México (1862-1867). A ideia de "latinidade" servia para justificar a intervenção francesa como uma "proteção" aos povos "irmãos" latinos e católicos contra a expansão dos EUA, vistos como anglo-saxões e protestantes. Era um discurso culturalista que mascarava interesses econômicos e geopolíticos franceses.

Adoção pelas Elites: Apesar do fracasso da aventura mexicana, o termo foi entusiasticamente adotado pelas elites dos jovens países hispano-americanos. Representava uma ruptura com o passado colonial ibérico (Espanha e Portugal) e uma forma de resistência simbólica ao expansionismo norte-americano, como aponta José Aricó.

Exclusão Original? Figuras como Simón Bolívar, no Congresso do Panamá (1824), excluíram deliberadamente o Brasil de suas visões de integração hispano-americana, citando diferenças de idioma, colonização (lusitana vs. espanhola), regime político (monarquia vs. repúblicas) e a forte dependência da escravidão africana no Brasil.

Símon Bolívar, símbolo de libertação da América Latina

"O batismo da região com este nome, América Latina, sucumbiu denominações dadas pelos povos originários, uma forma de silenciar a antiguidade do lugar", afirmam as pesquisadoras Aline Santos Silva, Gilca Garcia De Oliveira e Gabriela De Freitas Oliveira no artigo "O Brasil na América Latina: reflexões sobre a construção da identidade(s) latino-americana"

O diferencial brasileiro:

A relutância brasileira em abraçar a identidade latina tem raízes profundas na formação do país:

  • Colonização Lusitana e Escravidão: Diferente da maior parte do subcontinente colonizado pela Espanha, o Brasil teve uma colonização portuguesa marcada intensamente pela extração de produtos primários e, sobretudo, pela escravidão africana em larga escala. Isso criou estruturas sociais e econômicas distintas.
  • Processo de Independência Atípico: Enquanto as independências hispano-americanas foram marcadas por guerras contra a metrópole e fragmentação territorial, o Brasil manteve a unidade territorial sob uma monarquia liderada pelo herdeiro do trono português. Isso reforçou uma ideia de continuidade e diferença.
  • Identidade Nacional em Oposição: No período imperial, o Brasil construiu sua identidade nacional em oposição aos vizinhos hispano-americanos, vistos como turbulentos e não civilizados. O Brasil se via como uma monarquia "europeia" nos trópicos, distinta das repúblicas ao sul. Como destaca Luís Cláudio Villafañe, o Brasil "negava uma identidade latino-americana, negando inclusive uma identidade americana".
  • Fascínio pela Europa e EUA: Historicamente, as elites brasileiras voltaram-se mais para a Europa e, posteriormente, para os Estados Unidos, buscando modelos de civilização e desenvolvimento, minimizando os laços com a América Hispânica. Esse "olhar para fora" dificultou um sentimento de pertencimento regional. Leslie Bethell observa que os brasileiros consideravam haver apenas dois grandes países no hemisfério: Brasil e EUA.

Como pensam os brasileiros

O projeto The Americas and the World mostrou que apenas 4% dos brasileiros se definem como latino-americanos. Em contraste, a média em outros seis países pesquisados (Argentina, Chile, Colômbia, Equador, México e Peru) foi de 43%.

Quando perguntados com quais gentílicos mais se identificavam, 79% dos brasileiros escolheram "brasileiro" e 13% "cidadão do mundo". O Brasil foi o único país onde o adjetivo pátrio foi a principal escolha.

Brasileiros durante Brazilian Day, em Nova York. (Foto: 
MARCOS VASCONCELOS)

Um erro de processamento no Censo Americano de 2020 forneceu uma rara janela. Normalmente, o governo dos EUA (definição de 1997) considera "Hispânico/Latino" apenas pessoas de "cultura ou origem espanhola", excluindo brasileiros.

Em 2020, devido a um erro na "recodificação" dos dados, 416.000 brasileiros nos EUA foram contados como hispânicos/latinos (mais de dois terços da comunidade brasileira lá). Em 2019 e 2021, apenas cerca de 15.000 foram contados. Isso revela que, apesar da definição oficial dos EUA, muitos brasileiros imigrantes se sentem latinos no contexto norte-americano.

E para a ciência?

  • Dificuldade Histórica e Estrutural: Autores como Darcy Ribeiro enfatizam que a "unidade geográfica jamais funcionou aqui como fator de unificação" porque as diferentes implantações coloniais (portuguesa vs. espanhola) fizeram com que as sociedades latino-americanas "coexistissem sem conviver" por séculos. Celso Furtado via o termo inicialmente apenas com um "sentido espacial", sem preocupação com similaridades.
  • Identidade como Construção Política: Aníbal Quijano analisa a denominação "América Latina" como uma forma de "colonialidade do poder", impondo uma classificação externa. Porto-Gonçalves e Quental reforçam que o conceito foi formulado em disputas geopolíticas globais.
  • Defensores da Integração e Identidade Comum: Leopoldo Zea, filósofo mexicano, defendia veementemente a inclusão do Brasil na identidade latino-americana. Ele argumentava que Brasil e América Hispânica compartilhavam origem colonial ibérica, história de dependência, colonização e mestiçagem. Propunha a "união na igualdade da diversidade". Célio Horta argumenta que o conceito deve ser baseado em geopolítica e geoeconomia (exploração, dependência, lutas comuns) e não em critérios culturais eurocêntricos (língua, etnia), que geram exclusões arbitrárias (como Caribe não-hispânico). Para ele, todos os territórios ao sul do Rio Grande, independente da colonização ou língua, compartilham uma unidade de destino histórico e socioeconômico.

No fim, o Brasileiro é latino?

A resposta à pergunta "Brasileiros são latinos?" não é um simples sim ou não. É uma resposta em camadas:

  • Geograficamente: Sim, incontestavelmente.
  • Cultural e Historicamente: O Brasil compartilha traços fundamentais com a América Latina (colonização ibérica, escravidão, mestiçagem, subdesenvolvimento, dependência, desafios sociais, intervencionismo externo), mas também possui diferenças significativas moldadas pela colonização portuguesa, pelo processo de independência e por opções políticas e econômicas que o distanciaram dos vizinhos.
  • Identitariamente (no Brasil): Predomina um forte sentimento nacional ("brasileiro") e um distanciamento da identidade "latino-americana", como mostram os dados. A identidade nacional foi construída, em parte, em contraposição aos vizinhos hispânicos.

No contexto norte-americano, onde "latino" é uma categoria pan-étnica que frequentemente engloba todos os povos ao sul dos EUA, muitos brasileiros se sentem e são percebidos como latinos, conforme revelou o erro do censo.

Aqui, a experiência compartilhada de imigrante de um país em desenvolvimento das Américas pode sobrepor diferenças linguísticas e históricas específicas.

Politicamente, a Constituição Brasileira de 1988 estabelece o objetivo de buscar "a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações". Portanto, existe um reconhecimento oficial do pertencimento regional.

A identidade latino-americana, como aponta Manuel Castells, é uma "fonte de significado e experiência de um povo". Para o Brasil, esse significado é complexo e multifacetado. Enquanto fatores históricos e a construção da identidade nacional criaram um abismo de pertencimento, a geografia, a história compartilhada em muitos aspectos, a política externa e a experiência diaspórica nos EUA apontam para laços inegáveis.

A disputa sobre se os brasileiros são ou se sentem latinos reflete, em última análise, as complexas e por vezes contraditórias camadas que formam a identidade de um país continental inserido em um continente igualmente diverso e em constante transformação. O debate continua, evidenciando que a América Latina é menos uma entidade fixa e mais um projeto em constante construção e disputa.

Logo Forum