A legislação brasileira permite o acesso ao aborto legal em caso de gestações resultantes de estupro desde 1940. Porém, na prática, mulheres e crianças vítimas de abuso sexual enfrentam uma série de obstáculos para acessar esse direito - e, algumas vezes, acabam tendo que desistir.
De acordo com a lei, as vítimas de estupro têm direito ao aborto legal seguro e gratuito pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e não precisam apresentar boletim de ocorrência, exame do Instituto Médico Legal ou mesmo autorização judicial. A realidade no atendimento médico, porém, é outra.
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Como relata a defensora Livia Almeida, da Defensoria Pública da Bahia, são diversas as dificuldades que impedem que mulheres e crianças vítimas de abuso consigam realizar o aborto legal. A primeira é a falta de informação que impede que essas vítimas saibam que têm acesso ao procedimento. Ainda assim, quando têm esse conhecimento, sentem medo de serem criminalizadas se procurarem o serviço.
Além disso, mesmo quando buscam, encontram exigências desnecessárias impostas pelos médicos, seja também por falta de conhecimento da lei ou por má-fé, como conta a defensora. Esses profissionais exigem das vítimas, por exemplo, boletim de ocorrência ou necessidade de autorização judicial - que não estão previstos na legislação - ou ainda estabelecem limite de idade gestacional - o que também é inconstitucional.
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A defensora também aponta para um número muito escasso de serviços que realizam o aborto legal no país. Como exemplo, ela cita que quando o Núcleo de Defesa das Mulheres (Nudem) da Defensoria Pública começou a atuar, eram apenas cinco locais que realizavam o procedimento. Após a atuação do órgão, o número ampliou para 18, mas ainda é pouco ao considerar o tamanho do estado.
Acesso ao aborto legal negado três vezes
Um dos casos que representam os obstáculos para o acesso ao aborto legal aconteceu em São Paulo e foi relatado pela Defensoria do estado, que precisou atuar para que uma vítima de estupro conseguisse realizar o procedimento, negado três vezes.
A justificativa para impedir que a vítima realizasse o aborto legal foi justamente a idade gestacional. Ao procurar o primeiro centro de saúde, o Hospital da Mulher, referência da rede estadual em casos de violência sexual, a vítima estava com 24 semanas de gestação, teve o procedimento negado e exigiram que ela procurasse a Defensoria para que pudesse ter acesso ao aborto.
Porém, mesmo com a ajuda do órgão, o procedimento foi novamente negado pelo Hospital Municipal do Campo Limpo. Nessa segunda tentativa, a vítima relatou, em entrevista ao G1, que já estava perdendo as esperanças de conseguir realizar o aborto. "Já não estava muito bem psicologicamente e saí de lá mais abalada. Até então, eu achava que eu estava errada em tudo".
A próxima tentativa seria o atendimento no Hospital Municipal e Maternidade da Vila Nova Cachoeirinha, único no estado de São Paulo que realiza o aborto legal após 22 semanas de gestação. No entanto, o procedimento havia sido suspenso pela prefeitura.
Para piorar a situação, o Conselho Federal de Medicina (CFM) ainda emitiu uma nova resolução em que proibia a assistolia fetal, um procedimento recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para casos de aborto legal acima de 22 semanas de gestação.
Nesse momento, a vítima já havia sido encaminhada ao terceiro centro de saúde, o Hospital Municipal Tide Setubal, onde afirma ter recebido o pior tipo de atendimento: ela foi obrigada a ouvir os batimentos cardíacos do feto. Além disso, a equipe médica tentou a todo custo convencer a vítima a manter a gravidez.
Na quarta e última tentativa, a vítima teve que viajar para outro estado e receber assistência de um projeto indicado pela Defensoria.
Obrigadas a desistir do aborto legal
Livia Almeida também conta o caso de uma mulher vítima de estupro que teve que desistir do aborto legal após enfrentar obstáculos ao procurar o procedimento. Essa mulher chegou à Defensoria logo após a publicação da nova resolução do CFM e estava com a gestação avançada acima de 22 semanas.
Antes da resolução do CFM, a Defensoria da Bahia conseguiu que um hospital do estado virasse referência no país para a realização do aborto legal após 22 semanas de gestação. Mesmo que sem a norma do Conselho, a defensora ressalta que muitos médicos julgavam e tentavam impedir o procedimento. Após a resolução, se tornou inviável a realização do aborto legal.
Rebeca Mendes, advogada e fundadora do Projeto Vivas, que presta assistência a mulheres que têm direito ao aborto legal, também conta que são diversos os casos atendidos pela organização em que vítimas de estupro desistem do procedimento devido às dificuldades e violências que sofrem no caminho. Primeiro, elas muitas vezes encontram uma barreira territorial, uma vez que são poucos os hospitais que realizam o aborto legal - e menos ainda aqueles que realizam após 22 semanas de gestação.
Após essa primeira dificuldade, elas ainda sofrem outras violências na unidade de saúde, como médicos que obrigam essas mulheres a irem para a delegacia provar que sofreram abuso sexual. Além disso, mesmo quando conseguem autorização para realizar o aborto, a defensora conta que há muitos casos de vítimas que sofrem violência obstétrica por terem escolhido abortar. "Muitas vezes, os médicos colocam outras violências para torturar as mulheres, já que elas escolheram estar ali para abortar", conta a advogada.
Os casos de crianças
De acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 60% das vítimas de estupro em 2022 foram crianças de até 13 anos. Enquanto isso, são elas também as que mais encontram dificuldades para terem acesso ao aborto legal. Rebeca explica que, muitas vezes, essas crianças são diretamente direcionadas ao pré-natal quando chegam aos hospitais grávidas, sem terem a chance do acesso ao aborto legal. Ainda assim, quando conseguem, encontram os mesmos desafios citados acima, principalmente o de limite de idade gestacional. "Então, a gente tem um número gigantesco de meninas que se tornam mães dos filhos dos seus abusadores, mas a gente tem um número muito pequeno que chega efetivamente ao serviço", diz a advogada.
Limite de idade gestacional
A questão do limite de idade gestacional, que é um dos principais obstáculos para a realização do aborto legal, apesar de ser inconstitucional, é um dos pontos-chave do Projeto de Lei 1904/2024 em discussão na Câmara dos Deputados.
Criticado com fervor nas últimas semanas, o PL estabelece um limite de idade gestacional de até 22 semanas para a realização do aborto legal em caso de estupro, e criminaliza com uma pena equiparada ao crime de homicídio, mulheres e crianças vítimas de abuso sexual.
Livia ressalta que as gestações resultantes de estupro só chegam a 22 semanas justamente por ação do próprio Estado que dificulta o acesso ao aborto legal e agora quer criminalizar essas vítimas. Além disso, como já ressaltado por diversas entidades feministas, o PL vai afetar, principalmente, crianças e adolescentes vítimas de estupro, já que geralmente elas não conseguem perceber a gestação até esse período ou são até mesmo ameaçadas pelos seus agressores.
Para a defensora, o PL é um projeto que quer criminalizar pela terceira vez uma vítima de estupro. "Ela sofreu violência sexual, procurou um serviço de aborto legal que foi negado e, agora, ela corre o risco de ainda ser criminalizada", afirma.
Aberração
Por esses motivos, a defensora classifica o PL 1904/2024 como uma "aberração" porque ele vai contra toda a orientação jurídica e de saúde da OMS, de comissões interamericanas e conselhos internacionais. "Todos os estudos indicam que a criminalização não diminui o número de abortos, mas pelo contrário, aumenta. Já a descriminalização diminui, porque o aborto passa a ser uma política pública e o Estado investe em educação sexual, métodos contraceptivos e planejamento familiar".
Livia ainda reforça que o projeto estabelece uma tortura a mulheres e crianças que seriam obrigadas a carregar uma gestação resultado de um estupro. Além disso, ela aponta que meninas têm cinco vezes mais chances de morte materna do que pessoas maiores de idade. "Então, assim, uma pessoa com o mínimo de empatia não pode ser a favor desse projeto", diz. "Ninguém é a favor do aborto, e sim somos contra que mulheres sejam mortas ou criminalizadas pelo aborto", reforça.
A defensora ainda acrescenta o fato da maioria (56%) das vítimas de estupro serem mulheres e crianças negras, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. "Eu acho que está aí a explicação pela falta de empatia dessas pessoas que assinaram o PL. Elas não têm noção da realidade dessas meninas, crianças, adolescentes e mulheres e não conseguem se enxergar nesses lugares", afirma LIvia. "É uma total falta de empatia e humanidade", acrescenta.
Esse perfil das vítimas também é relatado por Rebeca, que aponta que a maioria das mulheres que procuram o projeto por causa de uma gestação resultante de estupro é negra e vive em situação de vulnerabilidade social.
As consequências do PL 1904
Como ressalta Rebeca, os casos de mulheres que não conseguem ou encontram inúmeras dificuldades até o aborto legal já exemplificam que, apesar do PL ainda não existir ou mesmo que ele não seja aprovado, já existem diversas barreiras indiretamente impostas por ele.
"É um PL muito absurdo, mas a gente já colhe muito dos malefícios que ele possivelmente pode trazer", afirma.
Para ela, caso o projeto seja aprovado, uma das consequências vai ser o aumento de abortos ilegais e até mesmo de abortos legais que poderiam ser realizados antes das 22 semanas. "Vai colocar muito mais mulheres em perigo porque vai criar um medo que só criminalização traz, então a gente vai empurrar cada vez mais essa mulheres para a criminalidade e para a insegurança". Outro ponto ressaltado pela advogada é o possível aumento da mortalidade materna em decorrência dos abortos ilegais.
Livia também reforça essa ameaça do PL. Mesmo que não avance, o projeto reforça o estigma da criminalização das mulheres que procuram o acesso ao aborto legal e pode diminuir ainda mais a procura pelas vítimas. Além disso, também pode ser usado como mais uma justificativa por profissionais que já ameaçam a hostilizam os que cumprem o dever de realizar o aborto legal.