O advogado Ariel de Castro Alves, especialista em direitos da infância e juventude, afirmou em entrevista à Fórum que a declaração de Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), deputado fundamentalista que encabeça o Projeto de Lei 1904/2024, conhecido como PL do Estupro, admitindo que, com a proposta, quer punir meninas menores de idade que interromperem gravidez decorrente de estupro com procedimentos abortivos, é uma "afronta aos direitos das crianças e dos adolescentes" e uma "aberração jurídica".
Em entrevista, ao responder sobre a forte repercussão negativa relacionada ao projeto, que na prática equipara o aborto feito a partir da 22ª de gestação ao crime de homicídio, inclusive impondo penas maiores às vítimas de estupro que aos estupradores, Sóstenes Cavalcante disse que, quando a situação envolver uma menor de idade, ela será submetida a "medidas socioeducativas", que também são um tipo de punição.
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“Não é pena alternativa, são medidas socioeducativas. Ela pode tranquilamente fazer um atendimento de socioeducação para que isso não volte a se repetir...”, disparou o bolsonarista.
Para Ariel de Castro Alves, que é ex-Secretário Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, a declaração de Sóstenes Cavalvante "mostra que, de fato, a principal finalidade da proposta é punir as vítimas de estupros, sejam mulheres adultas ou adolescentes".
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De acordo com o especialista, tanto a punição às crianças e adolescentes que interromperem a gravidez decorrente de estupro quanto o projeto como um todo são inconstitucionais.
"O Estatuto da Criança e do Adolescente proíbe a revitimização. A vítima precisa receber acompanhamento psicológico e social visando superar as violações sofridas e os traumas, e não ser duplamente punida pelo estupro e pela medida socioeducativa. Essa proposta se opõe totalmente ao princípio constitucional da proteção integral e da prioridade absoluta aos direitos das crianças e dos adolescentes. Por isso é inconstitucional e não pode prosperar."
"Entendo que a proposta significa um grande retrocesso. Mulheres vítimas de estupro poderão ser punidas com penas de homicídio, de 6 a 20 anos, maiores do que as aplicáveis aos estupradores. Estupro: 6 a 10 anos de reclusão; estupro de vulnerável: 8 a 15 anos de reclusão. Uma verdadeira aberração jurídica", diz ainda o advogado.
Acesso ao aborto legal
O aborto é permitido no Brasil em casos de estupro e, atualmente, não há limite de tempo de gravidez para que o procedimento seja realizado. O PL 1904, entretanto, propõe que a interrupção da gestação a partir de 22 semanas passe a ser crime equiparável ao de homicídio.
"Um dos princípios do Direito Penal Brasileiro é o da Proporcionalidade. E essa hipótese das vítimas de estupro receberem penas maiores do que de seus algozes é inaceitável", diz Ariel de Castro Alves.
O especialista explica que, em muitos casos, vítimas de estupro demoram mais de 20 semanas após o início da gravidez para realizarem o aborto legal pois, além de estarem traumatizadas, o acesso ao procedimento é restrito e burocrático.
"As meninas e mulheres vítimas de estupro, em alguns casos, demoram pra realizar o aborto por estarem submetidas, ameaçadas e constrangidas por seus agressores, e em razão da burocracia dos serviços de saúde, policiais e judiciais, e também pelas oposições morais e religiosas de alguns profissionais públicos e privados e das próprias famílias. Elas não demoram pra realização do procedimento por mero 'capricho'", pontua.
"A legislação brasileira deveria prever punições para os agentes públicos ou privados que dificultam a realização do aborto legal e não punir a vítima de estupro que já foi totalmente violada nos seus direitos fundamentais", defende Castro Alves.
De acordo com o advogado, que atualmente é membro da Comissão da Criança e do Adolescente da OAB-SP e do Instituto Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, o Congresso Nacional deveria, neste momento, se debruçar em "aprimorar o atendimento de saúde, social, psicológico, policial e judicial das mulheres e meninas gestantes em decorrência de estupros, e também gestantes que estejam em risco de vida ou grávidas de fetos anencéfalos para que o procedimento de aborto legal ocorra o quanto antes".
"A violência sexual, incluindo os estupros de vulneráveis, são as piores e mais recorrentes violações contra os direitos das crianças, adolescentes e mulheres adultas no Brasil. Esse tipo de proposta pode colaborar para agravar essa situação. O parlamento brasileiro deveria discutir e estabelecer propostas objetivando de fato o enfrentamento das violações de direitos humanos, ouvindo as entidades e os especialistas e não visando o proselitismo religioso e eleitoral, com proposições demagógicas e oportunistas como essa", finaliza.
Entenda o PL do Estupro
O Projeto de Lei 1904/2024 foi apresentado na Câmara dos Deputados pelo deputado bolsonarista Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), um pastor evangélico bolsonarista com ideias fundamentalistas, e é assinado por outros parlamentares de extrema direita.
Protocolado em maio, o projeto surgiu logo após o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), suspender uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) que limitava o acesso ao aborto legal em casos de estupro após 22 semanas de gestação.
Conforme o texto do PL, a penalidade para o aborto seria equiparada à do homicídio. "Quando houver viabilidade fetal, presumida em gestações acima de 22 semanas, as penas serão aplicadas conforme o delito de homicídio simples previsto no art. 121 deste Código", diz o primeiro parágrafo da proposição.
Essa proposta se aplica inclusive a casos de abortos realizados em circunstâncias de estupro, que são permitidos pela legislação brasileira nas seguintes situações: estupro, risco de vida para a gestante e anencefalia do feto.
O PL foi duramente criticado por criminalizar e revitimizar mulheres, especialmente crianças vítimas de estupro, além de impor a elas uma pena significativamente mais severa do que a aplicada ao próprio estuprador.
Apesar das críticas, o projeto teve seu pedido de urgência aprovado por deputados bolsonaristas e membros da bancada evangélica em tempo recorde na Câmara. A mobilização social, bem como o posicionamento contrário do governo Lula com relação à proposta, contudo, fizeram o projeto perder força na Câmara e, por hora, não há previsão de votação.