HISTÓRIA

Chica da Silva: Testamento que ficou perdido por 200 anos tem detalhes revelados

Confira trechos do testamento, escrito por Francisca da Silva em 1770 e recuperado após mais de 200 anos pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais

Documento histórico.Créditos: TJMG/divulgação
Escrito en CULTURA el

Chica da Silva é uma personagem quase folclórica da história brasileira, envolvida por mitos e idealizações criados sobre sua identidade e seu poder distinto: uma mulher mulata, filha de mãe negra e pai português, nasceu na primeira metade do século XVIII na região mineradora de Diamantina, lugar de intensa exploração da mão de obra negra e polo importador de escravizados.

A história de Francisca da Silva de Oliveira sobreviveu principalmente através da tradição oral. Conta-se como ela, nascida escravizada em Arraial do Tijuco, foi alforriada e se integrou à elite mineira de sua época, sobretudo por meio de seu relacionamento com um abastado contratador de diamantes: João Fernandes de Oliveira.

Em documentos históricos que remetem a 1754, Francisca da Silva é descrita como "parda forra", após ter sido propriedade de um médico português por anos de sua juventude e de ter tido com ele um filho, em 1751; "comprada" em seguida por seu parceiro, João Fernandes, que lhe concedeu sua alforria, Chica deu à luz mais 13 filhos. 

Em 1770, João Fernandes precisou retornar a Portugal para receber uma herança, e levou com ele os quatro filhos homens do casal, que receberam educação superior na Europa e foram atribuídos a cargos de nobreza na administração do Reino. 

Deixada no Brasil com as filhas, Chica da Silva ficou a administrar os negócios de extração de diamantes do marido, e narram as fontes orais que ela continuava a alugar escravizados para a Companhia Real de Extração das Minas do Brasil. 

Como mulher da alta sociedade, Chica gozava dos privilégios de sua classe — mas fazia parte tanto de irmandades de mulheres brancas e proeminentes de sua época como de irmandades formada por negros, como eram as irmandades das Mercês e do Rosário. 

Falecida em 1796, Francisca da Silva de Oliveira não teve sequer seu nome explicitado no testamento do parceiro João Fernandes, uma forma de "proteger" os filhos do casal de um legado "indigno" por conta de suas origens.

Os mitos sobre a vida, os modos, a aparência e o destino de Chica da Silva foram fundados ao longo de décadas após sua morte, e alimentados por descobertas de aspectos de sua história em antigos documentos oficiais. 

Os principais vieram da obra Memórias do Distrito Diamantino, de 1868, escrita pelo advogado Joaquim Felício dos Santos, que descobriu alguns atos do processo ligado ao testamento deixado por João Fernandes.

Desde então, diversas obras e artistas mencionam a figura de Chica, na poesia, no cinema e em exposições.

O testamento

Um novo documentário produzido pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), lançado nesta terça-feira (25), busca desmistificar algumas das crenças populares sobre a figura de Chica, transferidas via oralidade e há muito descritas em obras cheias de preconceito — mas, agora, a partir de seu próprio testamento, que ficou desaparecido por mais de 200 anos e foi recuperado pelo órgão em 2009.

Capa de testamento recuperado de Chica da Silva. Créditos: TJMG/divulgação

Aos doze do mês de novembro de mil setecentos e setenta anos e neste sítio de Macaúbas, eu, Francisca da Silva de Oliveira, andando de saúde natural e em meu perfeito juízo e conhecimento, porém temendo a morte como a todas as criaturas e não sabendo a hora em que Deus Nosso Senhor será servido chamar-me para, e desejando claramente dispor dos bens, evitar qualquer prejuízo que possa sobrar a todos ou algum dos meus herdeiros, pedi e roguei a Francisco José de Sales que este meu testamento e última vontade escrevesse e a meu rogo assinou, o qual faço na forma e maneira seguinte”, escreve ela no documento, de 1770, recuperado nos arquivos históricos pelo TJMG.

Página de testamento recuperado de Chica da Silva. Créditos: TJMG/divulgação

"Além dos documentos históricos, como a carta de alforria e [seu] próprio testamento, esta produção especial traz depoimentos de historiadores, da biógrafa, de funcionários de museus e do IEPHA [Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais]", diz a página oficial do TJMG.

O novo documentário contextualiza o legado de Chica da Silva entre as cidades mineiras por que ela passou, no Vale do Jequitinhonha, e explica tanto sua ascensão social como as contradições enfrentadas por ela durante sua trajetória na sociedade racista e machista do Império. 

Confira trechos do testamento 

“Declaro que nunca fui casada e que tenho quatorze filhos naturais, a saber cinco machos e nove fêmeas que iam por nome Simão, filho do Doutor Manoel Pires Sardinha, João, José, Joaquim, Antônio, Francisca, Rita, Anna, Elena, Luzia, Maria, Quitéria, Marianna, Antônia, todos filhos do Desembargador João Fernandes de Oliveira; nomeio e instituo e é de minha vontade nomear e instituir conforme devo de Justiça por universais herdeiros de todos os meus bens.”

“Quero que todos os meus filhos e filhas nomeados entrem igualmente e sem diferença alguma na Repartição de todos os meus bens que a esse tempo forem (...) Como a maior parte dos meus bens consiste em escravos, se algum dos meus herdeiros quiser receber na mesma espécie a parte que lhe tocar (...) Declaro que todo o ouro lavrado que se achar por meu falecimento em joias e peças com diamantes ou sem eles, pertença única e privativamente às ditas minhas filhas, por lhes assim ter sido dado por seu pai, o dito desembargador João Fernandes de Oliveira, antes de passar para Portugal. Às mesmas ditas minhas Filhas, deixo também o ouro lavrado do meu uso, como justamente o por o fazer (...)”

“Declaro que, se ao tempo do meu falecimento, existir ainda na mão do Tenente Coronel Ventura Fernandes de Oliveira certa quantia de mil cruzados, de que passou Recibo e parando em meu poder desse dinheiro, pertencem Líquidos ao dito meu filho Simão Pires Sardinha seis mil cruzados, procedidos dos Rendimentos dos escravos que lhe foram deixados por seu pai, o dito Doutor Manoel Pires Sardinha.”

 

“Declaro que a dita minha Mãe, Maria da Costa, por estar muito pobre, tenho a assistido até o presente, e é minha intenção [a] assistir para o futuro com tudo o que lhe for preciso para o seu sustento e vestuário, e assim, no caso dela sobreviver ao tempo do meu falecimento, é minha vontade que os meus testamenteiros da minha terça lhe deem, por uma vez somente, trezentas oitavas de ouro, cuja quantia não bastando e continuando-lhe Deus a vida por mais anos, recomendo a todos os meus filhos e filhas, pela minha bênção e pela de Jesus Cristo, lhe continuem a mesma assistência, como eu o faria do necessário para a sua sustentação e que, assim mais, que uma escrava, por nome Quitéria, que lhe dei para a servir em sua vida, lhe não seja tirada e não somente depois da sua morte.”

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