ECA, avançar e barrar retrocessos

Estatuto da Criança e do Adolescente mostra resultados positivos, mas muitos pontos ainda precisam ser implementados

(Foto: Wilson Dias/ABr)
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Estatuto da Criança e do Adolescente mostra resultados positivos, mas muitos pontos ainda precisam ser implementados

Por Patrícia Benvenuti, do Brasil de Fato 

[caption id="attachment_27840" align="aligncenter" width="600"] (Foto: Wilson Dias/ABr)[/caption]

Tratar a criança e o adolescente como sujeitos de direitos, fornecendo a eles condições adequadas para seu desenvolvimento. Em poucas palavras, esse é o objetivo do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que, em 13 de julho, completou 23 anos. Criado em 1990, dois anos após a Constituição, o ECA garante às crianças e adolescentes uma série de direitos como saúde, alimentação, educação, esporte, lazer, cultura e convivência familiar e comunitária, dentre outros pontos.

Fruto de mobilização popular, o Estatuto representa um marco para a efetivação dos direitos humanos no país. “Crianças e adolescentes foram colocados na pauta nacional, coisa que antes não acontecia”, afirma a coordenadora nacional da Pastoral do Menor, Marilene Cruz.

A juíza da Vara da Infância e Juventude do Fórum Central de São Paulo e membro da Associação de Juízes para a Democracia (AJD), Dora Martins, também ressalta o ineditismo do Estatuto. O principal avanço, para ela, foi apresentar crianças e adolescentes como sujeitos de direitos. “O ECA foi uma mudança de paradigma: a criança não é um objeto menor para ser cuidado, é um sujeito de direitos”, explica.

Até a criação do Estatuto, no início dos anos 1990, o tratamento dispensado às crianças e adolescentes seguia o Código de Menores (1979). Marcado por forte discriminação, o Código se dirigia aos “menores em situação irregular”, que eram sempre aqueles em situação de rua ou em conflito com a lei. O remédio era sempre o mesmo, a reclusão.

Para o advogado Ariel de Castro Alves, presidente da Comissão da Infância e Juventude da OAB de São Bernardo do Campo e membro do Movimento Nacional de Direitos Humanos, o ECA pôs fim à “visão correcional” e universalizou a questão.

“O menor era sempre o filho do pobre; as crianças, sempre os filhos das famílias mais abastadas. O Estatuto veio a romper isso: todos são crianças e adolescentes e iguais perante a lei”, destaca Alves, que também é ex integrante do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda).

Outro conceito importante trazido pelo Estatuto, de acordo com o advogado, é a ideia de que a família não é a única culpada pelas ações de uma criança ou adolescente. A legislação também aponta o Estado e a sociedade como responsáveis pela situação. “Somos todos responsáveis quando estamos diante de uma criança nas ruas, vítima de trabalho infantil, exploração sexual ou mesmo de um adolescente em conflito com a lei. Essa é a grande ruptura que o Estatuto introduziu na legislação”, afirma.

Avanços

A conquista de uma legislação específica para garantir os direitos das crianças e adolescentes vem conseguindo, aos poucos, trazer melhorias. A integrante da coordenação do Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes (Cecria) Karina Figueiredo enfatiza que 23 anos é um tempo reduzido para mexer com questões culturais tão arraigadas, como a forma de se encarar os jovens na sociedade.

No entanto, considera que a mudança é perceptível. Cita como exemplo a criação dos conselhos tutelares, que passaram a trabalhar com a ideia de não mais separar as famílias. “Antes se separava irmãos, cada um ia para um lado, se separavam famílias. Hoje isso não acontece mais”, pontua.

Alguns indicadores também mostram a importância do Estatuto. O mais expressivo se refere ao índice de mortalidade infantil. Até 1990, a média chegava a 60 mortes para cada mil nascimentos. Atualmente, são 16 mortes para cada mil. Os casos de gravidez na adolescência também caíram para 30% nesse período, e até o trabalho infantil apresentou redução: se hoje ainda são 3,4 milhões de crianças e adolescentes explorados, na década de 1980 eram 9 milhões.

Outro ponto positivo ocorreu em relação ao tratamento de jovens em situação de abandono. Os antigos orfanatos foram substituídos por abrigos, que têm que ser instalados em casas e ter, no máximo, 20 crianças. De acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), 36 mil crianças vivem nesses locais.

É preciso mais

Apesar dos avanços, há um longo caminho para se efetivar, de fato, os direitos das crianças e dos adolescentes. Muitos pontos ainda precisam sair do papel, como a destinação privilegiada de recursos públicos para projetos que garantam a proteção de crianças e adolescentes, prevista no artigo 4º do Estatuto. “Essa destinação privilegiada de recursos jamais existiu”, afirma Ariel de Castro Alves.

A consequência é a impossibilidade de garantir o funcionamento efetivo de serviços como conselhos tutelares e delegacias especializadas. Enquanto as delegacias são poucas em todo o país, os conselhos existem em 99,3% das cidades, mas enfrentam problemas de infraestrutura, falta de pessoal e trabalhadores mal remunerados. E nem o Poder Judiciário, que poderia tomar medidas para o cumprimento da legislação, tem pernas suficientes.

Uma pesquisa do CNJ em 2010 revelou que apenas 6% das comarcas têm varas especializadas exclusivas da Infância e Juventude. Mesmo iniciativas importantes como o Disque 100, que recebe denúncias de violações contra crianças, adolescentes e outros grupos sociais, acabam por perder efetividade, já que não há quem apure as informações. A falta de atendimento às famílias é outro problema grave, como explica Alves.

Nos municípios, a responsabilidade costuma ficar com os Centros de Referência de Assistência Social (Cras) que, igualmente capengas, acabam funcionando meramente como locais de cadastramento.

Em geral, segundo o advogado, é oferecido apenas o programa Bolsa-Família, que não dá conta das diferentes de demandas envolvidas em cada caso. Para ele, o cenário revela a falta de prioridade do poder público. “A área social ainda é tratada com completo desdém e desleixo pelos governos”, critica.

“O ECA é um avanço em termos de garantias escritas no papel, mas na realidade a aplicação dele é muito complexa”, avalia a juíza Dora Martins. Ela cita o caso das creches, garantidas para crianças de zero até quatro anos. Atualmente, apenas 20% das crianças brasileiras nessa faixa etária têm acesso às unidades. Só em São Paulo, cidade mais rica do país, há um déficit de 100 mil vagas.

“Vamos supor que sejam 80 mil famílias: são 80 mil mães que não conseguem trabalhar e deixam a criança presa em casa, no vizinho ou na rua”, ressalta Dora.

Outro ponto estagnado, de acordo com Karina Figueiredo, do Cecria, é a criação de políticas de lazer, cultura e esporte. “Não se tem no país uma política de esporte, cultura e lazer para infância e adolescência, que são direitos fundamentais. É uma área em que se avançou muito pouco”, lamenta.

“Nesses 23 anos nós avançamos, mas não estamos no patamar em que se possa dizer que o Estatuto está sendo colocado em prática”, sentencia Marilene, que cita o cumprimento do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) como outro desafio a ser conquistado.