CYNARA MENEZES
Se no Sul e Sudeste o político coxinha, com perfil "técnico", ainda continua em alta, na Bahia não há candidato que queira ser "menino amarelo", gíria baiana para as crianças "criadas a leite com pêra", como se diz em São Paulo, ou o "piá de prédio", como se fala no Paraná. Com 75,6% de alunos negros na UFBA (Universidade Federal da Bahia) e outras 3 federais criadas no Estado nos governos petistas, a conscientização das classes populares, de maioria negra, está cada dia maior; e quanto mais se empoderam os negros baianos, mais o "menino amarelo" é rejeitado como seu representante na política.
O caso de ACM Neto e sua autodeclaração de raça é emblemático. Menino criado a arroz doce, malassado e camarão no bairro nobre da Graça, onde seu avô ACM sempre residiu no maior dos confortos, e atual morador do bairro vizinho de Ondina, Neto tentou nesta eleição se repaginar como "pardo", mas não colou. Pelo contrário, só lhe trouxe até agora dores de cabeça, memes e queda nas pesquisas.
O auge da problemática se deu quando o candidato, aparentando estar bronzeado artificialmente (ele nega), foi questionado por um repórter negro da televisão de sua família se não estaria prejudicando a luta contra o racismo ao se declarar pardo sem ter afroascendência –é moreno, sim, mas porque descende de árabes pelo lado "Maron" da família. Não há conhecimento de que haja negros na família ACM.
Confrontado pelo repórter com o fato de que, para o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), pardos e pretos constituem estatisticamente o grupo dos negros, Neto não se deu por vencido e culpou o instituto. "Então o erro é do IBGE, não meu", disse, irritado. Dias depois, chegou a insinuar que a polêmica teria um fundo ideológico, já que o governador Rui Costa, do PT, se declara pardo com "praticamente a mesma cor de pele" dele. “O político que se diz de esquerda pode se declarar pardo e outro não? Isso é hipocrisia.”
Muita gente especulou que se declarar pardo teria sido uma escolha puramente calculista de ACM Neto para ter direito a mais recursos do fundo eleitoral. O escritor, tuiteiro e youtuber Franciel Cruz acha que há mais nuances aí. "Foi uma ideia de jerico para tentar competir com a cor de Jeromo (Jerônimo Rodrigues, candidato do PT)", aposta Franciel. "Mudou o aspecto simbólico. Há pouco tempo, a galera fazia questão de se dizer conservadora. Agora, o vento foi para o outro lado."
Jerônimo, autodeclarado indígena, tem pele escura e cabelo liso grisalho –um mestiço de negro e indígena que os baianos costumam chamar de "cabo verde". Sua irmã, Marta Rodrigues, vereadora em Salvador e atual candidata a deputada federal pelo PT, se declara preta e usa trancinhas. Os pais de Jerônimo e Marta, naturais de Aiquara, no Sul da Bahia, descendem de negros e tupinambás. Se eleito, o petista se tornará o primeiro indígena a governar um Estado e o governante com o tom de pele mais escuro que a Bahia já elegeu desde a volta da democracia.
Segundo os números mais recentes do IBGE, o Estado possui cerca de 80% da população que se declara preta ou parda. Mas, desde 1986, quando foi eleito o primeiro governador, e desde 1988, quando foi eleito o primeiro prefeito de Salvador, houve governantes no máximo pardos na "Roma negra". Há 3,4 milhões de pretos e 8 milhões de pardos na Bahia, mas só uma vez um preto retinto chegou ao poder na capital: Edvaldo Brito, através de voto indireto, ainda na ditadura, em 1978. Naquela época os prefeitos eram indicados pelos governadores e não eleitos pelo povo; por isso eram conhecidos como "biônicos".
Franciel lembra que o estilo de político mauricinho que ainda enche os olhos de eleitores país afora também já esteve de moda na Bahia. Na época de ACM, o Velho, era comum entre seus auxiliares e puxa-sacos o figurino idêntico de camisa branca de botões com listras azuis. Moreno também de origem árabe, Paulo Souto (nome do meio Ganem), escolhido pelo carlismo para ser o adversário de Jaques Wagner (branco de olhos azuis e origem judia) na disputa de 2006, e de Rui Costa na disputa de 2014, foi derrotado em ambas as eleições, embora as pesquisas o apontassem como vencedor no primeiro turno.
Pergunto ao escritor se a polêmica da autodeclaração poderá custar a eleição a Neto ou vai ficar nos memes. "Não creio, mas pode contribuir. Jeromo já estava em franca ascensão. Porém, o fenômeno envolve outros fatores, como a força do PT e, especialmente, de Lula. Até brinquei outro dia que Jaques Wagner só ganhou a eleição porque Paulo Souto se declarou indígena", galhofa Franciel. "Esse tipo de polêmica serve como folclore, mas a influência, creio, é pouca. Serve mais pra desmoralizar, o que não é pouco."
Esse desejo de se livrar da pecha de "menino amarelo" também atingiu o prefeito de Salvador e cria de ACM Neto, Bruno Reis. Em agosto, irritado com a pressão dos agentes de saúde do município por reajuste salarial, o prefeito, que estudou a vida inteira em colégio particular e se formou em Direito em universidade privada, disparou: "Pode criar o problema que for, meu irmão: eu sou 'pivete' do Calabar, rapaz".
É provável que o prefeito tenha brincado, quando criança, com os meninos do Calabar? Sim. Mas é bastante improvável que se enquadre na descrição de "pivete do Calabar". Encravado entre os bairros nobres de Morro do Gato e Jardim Apipema, o Calabar é um dos bairros mais negros e mais carentes de Salvador. Bruno Reis, que também se autodeclara pardo, saiu em defesa do padrinho político, questionando, como ele, o perfil racial dos adversários.
"Qual a diferença de cor de Rui Costa para ACM Neto? Qual a diferença de cor de Geraldo Júnior (candidato a vice de Jerônimo) para ACM Neto, que se declarou pardo? De tantos deputados do PT que se declararam negros? Rosemberg, líder do PT, é negro?", questionou Reis. Mas, na semana passada, o prefeito foi colocado em xeque por integrantes do movimento negro por ter vetado o fim da denominação "elevador social" e "elevador de serviço" nos edifícios da capital baiana, aprovado em março pela Câmara dos Vereadores.
"Estamos em tempo de burgueses brancos que se declaram pardos para auferir vantagens políticas e financeiras, que deveriam ser destinadas às ações reparatórias em benefício das vítimas das mazelas deixadas pelo escravismo, colonialismo e racismo que perduram até hoje no nosso País. Enfim, veto do prefeito Bruno 'pivete do Calabar' Reis, que administra a cidade de maior população negra do mundo fora da África”, ironizou Moisés Rocha, do MNU (Movimento Negro Unificado), ao jornal A Tarde.
No debate da TVE entre os candidatos ao governo, outro "menino amarelo" foi colocado na berlinda, o bolsonarista João Roma, do PL –ou "candidato Nutella", como se referiu a ele o candidato do PSOL, Kleber Rosa, que é negro. “Quero dizer pro candidato Nutella que ele não pode dizer a um candidato raiz o que é fome. No mundinho que você vive, Roma, a realidade não é a mesma do que eu vivo. Sei o que é fome na prática, e sei porque estudei. Vim aqui hoje te dar uma aula de realidade. Saia do seu mundinho de fantasia e venha para a realidade", disparou Rosa. "Você empinou arraia? você jogou bola? Você jogou gude? Você não sabe nada disso, rapaz. Você é um almofadinha.”
O pernambucano Roma, branco como leite, olhos azuis como Bolsonaro, metido num terno impecável, trincou os dentes de raiva. "Cola comigo que a gente vai lá", respondeu, fora de seu tempo de réplica. "Tão Nutella que não aguenta a pressão, tá vendo? Gritou logo", provocou mais uma vez Rosa.
“Não é me olhando que o senhor vai manifestar seu preconceito em cima de mim, não. Escolha a modalidade, querido, que a gente se emenda. Agora, não venha com essa sua conversinha mole, não. Você não bate um prego numa barra de sabão, e fica nessa conversa, enrolando os servidores, achando que isso é fazer política. Política a gente faz com projeto, resolvendo os problemas das pessoas”, rebateu o bolsonarista.
"Seja para abocanhar mais 40% do fundo eleitoral, seja para tentar se aproximar, ganhar a simpatia, o voto do nosso povo negro, periférico, esses caras continuam operando no campo do oportunismo, do afro-oportunismo", critica a socióloga e ativista do feminismo negro Vilma Reis
"O candidato Roma segue com sua visão preconceituosa a meu respeito", contra-atacou o PSOLista. "Trabalho desde os meus 12 anos de idade. Trabalhei em oficina mecânica, oficina de elétrica, trabalhei com meu pai estofador, aprendi a profissão, sobrevivi com essa profissão, carregando muito sofá na cabeça, até que entrei na universidade e pude a partir daí me dar uma condição melhor, fazendo concurso e sendo professor e sendo investigador da polícia civil, duas profissões que eu tenho muito orgulho e que exerço de forma digna. Portanto, sou trabalhador e sempre fui trabalhador. E volto a dizer: o mundinho que ele vive é o mundinho da fantasia onde ele enxerga o trabalhador dessa forma preconceituosa."
"Seja para abocanhar mais 40% do fundo eleitoral, seja para tentar se aproximar, ganhar a simpatia, o voto do nosso povo negro, periférico, esses caras continuam operando no campo do oportunismo, do afro-oportunismo", critica a socióloga e ativista do feminismo negro Vilma Reis. "Eles pensam que são donos do Brasil e que nossos corpos estão sob o seu poder, o seu domínio, mas o nosso povo não é bobo. Nós, negras e negros da Bahia sabemos, muito bem, quem é que é vítima das opressões do racismo, quem é que sofre com a falta de emprego, com a carestia, com a truculência da polícia, o descaso do poder público com as nossas comunidades e com as nossas vidas. E, com certeza, esses caras não são parte dessa vulnerabilidade."
Qual será o próximo passo da burguesia branca baiana para tentar se parecer às classes populares? Falsear currículo ao contrário, omitindo todos os mestrados e doutorados em universidades de elite e trocando por escolas públicas? Renegar a própria árvore genealógica?
"Pelo contrário, são os responsáveis por todas as mazelas que nos colocam na condição de cidadãs e cidadãos de última classe, quando o assunto é acesso a direitos. Esses canalhas não têm limites. Eles atacam as políticas de ações afirmativas, as políticas reparatórias, foram contra as cotas e o decreto quilombola. Eles são inimigos da população negra, nos atacam há muito tempo", diz Vilma, que é candidata a deputada federal pelo PT.
A socióloga lembra que o então partido de ACM Neto, o DEM, chegou a ir ao STF duas vezes contra as políticas de ação afirmativa: no caso das cotas, entraram com uma ação direta de inconstitucionalidade em 2003 e foram derrotados em 2012. Depois, em 2006, entrou com uma ação contra o "decreto quilombola", o decreto 4.887 de 2003, criado pelo presidente Lula com a chancela de todo o movimento negro brasileiro para demarcação das terras quilombolas, e foram novamente derrotados em 2018. ACM Neto se declara favorável às cotas e criou cotas raciais em concursos para a prefeitura de Salvador.
Qual será o próximo passo da burguesia branca baiana para tentar se parecer às classes populares? Falsear currículo ao contrário, omitindo todos os mestrados e doutorados em universidades de elite e trocando por escolas públicas? Falsear a biografia privilegiada dizendo que trabalha desde a infância? Renegar a própria árvore genealógica? Como disse o escritor Jeferson Tenório no artigo ACM Neto, o pardo mais branco do Brasil, publicado no portal UOL: "O homem branco não tem medo de escrever sobre pautas que ele nunca estudou. O homem branco não tem medo de ser questionado. O homem branco pode tudo, inclusive mudar de cor."